
Um cafezinho com Alberto Renault
“O som me interessa, a luz me interessa, a espacialidade me interessa. Todos os requisitos que alguma pessoa pode vir a querer ter no seu morar, eu sinto que conquistei na minha casa.”
Tomar café na casa de alguém é um convite para conhecer profundamente essa pessoa. Nossa casa é a casca que nos protege do mundo. Ela é parte importante de nossa cultura particular, e reflete a maneira como enxergamos e gostaríamos de nos inserir no mundo.
Aqui, dividimos casas de pessoas que gostam de casa. Que têm suas casas vivas, cheias de objetos que contam a história de uma vida, sem um lugar perene em seus espaços.
Alberto Renault é diretor de tv e documentários, e anda por aí de casa em casa há 15 anos, nos apresentando brasis diferentes dentro do Brasil. Com gentileza, poesia e competência, ele nos conta histórias de brasileiros que nos dizem sobre nós.

E aí, como estão as coisas? Me conta o que tem feito de bom. Eu vi que vocês lançaram um episódio novo do programa no YouTube.
Tudo bem. É, estou trabalhando em uma temporadazinha de cinco episódios. Na semana retrasada estreou o com a Lia Siqueira, arquiteta. Amanhã, domingo, estreia um com projeto do Sérgio Rodrigues para a casa da Regina Casé. Nessa série, eu busco sempre ter o morador da casa. Por mais que sejam projetos assinados, ou são assinados por quem está morando ou a gente tem o morador e o arquiteto. No programa Casa Brasileira, que eu fazia, a proposta já era a de apresentar não apenas um projeto, mas a interação entre quem criava e quem fazia aquela demanda. Não existe arquitetura sem demanda, existe sempre para quem foi feita aquela obra. Estou editando e terminando de gravar essa série, e gosto muito, especialmente, do último episódio, que vai ser a Casa Cavanelas, um projeto do Oscar Niemeyer, com um jardim incrível do Burle Marx.
Aí no Rio?
É, em Petrópolis. Já gravei essa casa para o especial Oscar Niemeyer, mas eu vou regravar para a série De casa em casa. Eu estou também em cartaz, circulando entre festivais, na Filadélfia e na Itália, com um filme, que é o Anna Mariani, anotações fotográficas. Ele está fazendo um circuito de filmes de arte e de arquitetura… E estou na preparação de roteiro de um segundo documentário, chamado Da oca ao concreto, onde eu conto a história do Brasil a partir das casas. Eu vou passando por uma oca, uma casa bandeirante, uma casa colonial, uma casa do Império, vou passando por todas as casas, vendo como estão um pouco hoje, até chegar num projeto moderno, senão contemporâneo. Estou pensando ainda o caminho aonde eu chego, mas então estou nos estudos dos textos desse roteiro.
A ideia é ser algo mais visual ou você também vai conversar com os moradores, algo mais histórico?
Para esse Da oca ao concreto, a gente está fazendo uma pesquisa de textos referentes a casas e suas épocas. Serão vozes em off e, eventualmente, a minha, que ilustrarão e acompanharão o percurso da câmera. Teremos textos literários, que podem ser mais epistolares, como cartas, textos em primeira pessoa, ou mesmo como um trecho d’A Moreninha, do romance que descreve uma casa em Paquetá, ou mesmo a carta de Pero Vaz de Caminha, que descreve uma oca. Serão textos históricos, daquela época, que fazem referência à casa. Não devemos ter entrevistas ou pessoas aparecendo.


Você tem narrado cada vez melhor. Está treinando muito?
Estou treinando. A gente é muito crítico consigo mesmo, mas acho que estou me acostumando com a minha voz, com a minha presença sonora nos vídeos, porque, realmente, eu não quero ser um apresentador, não me interessa isso. O que eu gosto de fazer é criar narrativa, conduzir, levar música. É o meu olhar que eu gosto de mostrar — desejo que as pessoas não olhem para mim, mas que olhem comigo. A linguagem, que eu fui desenvolvendo ao longo desses anos, é mostrar a casa no sentido mais amplo da palavra, porque não é só arquitetura, também não é só antropologia, não é apenas uma técnica construtiva, é um jeito de olhar para a vida.
De onde vem esse seu interesse por casas?
Freudianamente falando, acho que ele vem de uma infância, talvez, solitária. Eu brincava muito sozinho e isso me levava a construir mundos. Eu morava num prédio muito alto, e adorava passar por cada um dos andares para ver como era ali, o que havia naquele hall que não era o meu, onde ficava a casa dos outros. Esse interesse vem de alguém que é muito espectador. A vida foi me colocando numa posição de quem está observando. Então a casa é um dos elementos que eu adoro observar, assim como a natureza e o jeito que as pessoas se vestem. Vem de uma curiosidade, de querer procurar uma fresta aberta. Se alguém quer me contar algo, eu digo “conta logo, pelo amor de Deus”, eu sou extremamente curioso e interessado. Estamos conversando por vídeo e fico imaginando o que tem atrás de você. Vejo três luminárias e já penso, “será que é ali que ele lê?”. Tenho uma curiosidade plástica, estética e dramatúrgica. A primeira curiosidade sobre casas começou no meu quarto. Toda semana eu mudava a posição de tudo, mudava os quadros, os móveis e os brinquedos.

A sua casa tem uma coisa que eu amo, que é uma casa que tem uma base branca. Qual você acha que é o papel do branco numa casa?
A minha não só tem a base branca como uma parede inteira vazia. Eu gosto muito do vazio e o branco é uma cor que sugere muito esse espaço. Gosto da possibilidade do vazio exatamente para poder preenchê-lo. Por sorte, tenho o privilégio de duas janelas para uma das vistas, que eu acho, uma das mais bonitas do mundo.
É bem impressionante.
Ainda coloquei espelhos na lateral das janelas para multiplicar essa vista, essa possibilidade de janela. Eu gosto da neutralidade do branco para que os livros, e qualquer coisa que entre aqui, possa acontecer. O branco é uma espécie de moldura serena para as coisas acontecerem.
A sua casa tem muitos objetos, muitos livros, mas ela não é uma casa cheia.
Tem uma brincadeira entre vazio e cheio, uma disposição bem minha do espaço. Não tem aquele desenho clássico de sofá, mesa de centro, poltrona em frente, essa estética que você pode repetir ad eternum em várias casas. Naquele livro do Tanizaki, Em louvor da sombra, ele fala muito do espanto do oriental com a casa ocidental. Como pode ter uma fruteira em cima de uma mesa e, do lado, um quadro com frutas? A quantidade de coisas que tem enfeitando. Eu não gosto que os objetos estejam ali para enfeitar, e o branco ajuda as coisas a estarem ali por si só, enfeitando sem estarem propositadamente enfeitando, digamos assim.

Dá pra perceber que você tem muitos objetos, que, imagino, são objetos da vida, que você foi juntando em viagens.
Sim, não tem nenhum objeto comprado para enfeitar. Se comprei um soldado numa feira em Macau, é porque queria trazer um pouco daquele lugar. Um objeto é, efetivamente, tempo e espaço. Ele me traz uma época da minha vida, traz um momento que eu pude estar ali, naquele lugar em Hong Kong. É um pedaço da minha experiência que está registrado ali. Mas aos 61 anos, estou bem menos acumulador de objetos.
Tudo que você tem está em uso, exposto, ou você guarda?
Na minha casa não tem gaveta ou armário. Tudo fica exposto. Esse sininho de cabra, por exemplo, é do sertão, quando estava filmando o filme da Anna. Mas a minha relação com os objetos é muito afetiva, como essa louça do Azumi, o restaurante japonês em Copacabana que fechou, ou esse potinho do Copacabana Palace. São objetos que realmente contam alguma história. Eu não sou etimólogo, mas a palavra “decorar” deve ter alguma relação com coração. Se não tiver, cai muito bem num texto.

O que a sua casa te oferece em termos de conforto e bem-estar?
Eu não seria a pessoa que eu sou, com as ambições que tenho, se não morasse aqui do jeito que eu moro. É um apartamento que fui comprando aos poucos. Comprei um, depois o outro, e juntei ambos. Financiei. Moro aqui há 25 anos e não pretendo mudar. Eu tive essa sorte, mas tem pessoas que gostam de mudar, que não têm muito apego onde estão. Normal. Eu, por outro lado, tenho muito apego. Quando pequeno, andava de ônibus, voltando do colégio, e pensava “quero morar aqui. Não, aqui. E nesse. E nesse”. Morar era um assunto que me interessava. Essa casa é um espaço sem paredes, algo excelente para quem mora sozinho. Eu sei que tempo está fazendo, não preciso olhar por uma fresta para ver como está o céu. Acordo muito cedo, então vejo o amanhecer e o anoitecer. Originalmente, esse lugar no Rio de Janeiro se chamava Fazenda da Lagoa. Pela manhã, às 6h, quando abro a janela, é um silêncio, um som de pássaros muito forte. Eu me sinto na Fazenda da Lagoa nos anos de 1800 e tanto. Para quem é ligado ao bem estar, seja ele sonoro, olfativo ou tátil, todos esses elementos estão reunidos aqui. O som me interessa, a luz me interessa, a espacialidade me interessa. E isso tudo me faz muito bem. Eu não tenho vontade de sair, e quando viajo, tenho vontade de voltar. Todos os requisitos que alguma pessoa pode vir a querer ter no seu morar, eu sinto que conquistei na minha casa.
Qual é o papel da vista que você tem aí? Ela é bem impressionante
Diria que é para mim é essencial, mas, no geral, acho que a vista é bastante subjetiva. Às vezes, a pessoa não tem consciência de que certos elementos nos fazem bem ou que determinado lugar está nos fazendo mal. Quantas casas lindas e interessantíssimas eu visitei, por exemplo, numa favela, com uma vista inacreditável e a pessoa amava aquele horizonte. Quantas casas, também na favela, tinham uma parede cobrindo a vista, e eu falava “pelo amor de Deus, faz um recorte aqui e você vai ter a visão mais incrível do que qualquer costa grega”, e a pessoa simplesmente não estava se importando com aquilo. É subjetivo no sentido de que podemos escolher não ter vista, buscando mais introspecção ou praticidade. No sertão, muitas pessoas não querem a vista, porque a claridade atrapalha. É relativo, mas, no meu caso, ela não é uma paisagem a ser admirada, mas uma paisagem a ser vivenciada. Muitas vezes tenho a sensação de que estou no campo, em plena natureza. O Paulo Mendes da Rocha tem uma definição de arquitetura, uma das mais brilhantes que conheço, de que a arquitetura não é nada mais do que uma proteção em relação à natureza. Aqui eu me sinto na natureza, protegido numa caixinha, olhando para uma natureza exuberante. Quando perguntado, Lúcio Costa dizia que projetava prédios baixos, porque até o sexto andar uma mãe poderia chegar na janela e gritar para o filho: “vem, está na mesa, vamos jantar”. Moro no terceiro andar de um prédio de quatro andares, então é uma vista de detalhes, não um skyline como os de Manhattan ou São Paulo, e que às vezes podem ter a sua beleza. A escala aqui é humana, permitindo o detalhe. Abro a janela e vejo a coleira do cachorro ali embaixo. Vejo a pessoa que está passando na canoa, a roupa de quem está remando, de quem está correndo na pista em frente. Olho a rua para ver se as pessoas estão de casaco e isso me diz se está quente ou frio. É uma vista muito presente e sobre o presente. Pode parecer bobo, mas é um jeito de morar que as cidades poderiam replicar muito mais.


Sem dúvida. Você que rodou o Brasil com seus programas, sente que há uma diferença entre o morar em cada um dos estados do país?
São tantos estados e classes sociais. Diferença é difícil, porque o mundo caminha para uma pasteurização.
Você acha que temos ainda nuances? Ainda conseguimos encontrar alguma coisa que foi retida de originalidade regional?
Eu acho que talvez diferenças de construção. Das casas de palafitas da Ilha de Marajó para o Sertão Mineiro, efetivamente, a gente ainda tem marcas originárias vernaculares das construções desses lugares, ou dos telhados mais alpinos, digamos, no Sul. Ainda é possível rastrear algumas especificidades nas construções das casas, até nas populares.

Penso isso a partir do que você falou, das vistas de uma favela e de uma casa no sertão. Local, espaço, temperatura marcam diferenças?
Esses fatores influenciam, realmente. As casas do sertão têm janelas menores, pois o lavrador trabalha o dia inteiro na claridade, do lado de fora. De certa forma, também, a estrutura de uma janela impacta nos custos. Mas sinto que é algo mais de comportamento. Há uns 3 ou 4 anos, eu estava no Japão e observei que muitas casas tinham duas, três, quatro garrafas de plástico de água paradas na porta da casa. Eu não consegui descobrir o motivo. Corta. Três anos depois, estou no interior do Cariri, filmando casas com garrafas de plástico de água. Qual é a função delas? Para o cachorro ou gato não vir fazer xixi. Corta. Rio de Janeiro, 4 anos depois, o porteiro aqui do lado, “de onde o senhor é?”, “do Cariri”, “por que essa garrafa de plástico está aqui?”, e ele me responde: “para o cachorro não vir fazer xixi”. É algo antropológico. Qual o circuito de uma coisa estar no interior do Japão, estar no Cariri e chegar no Rio? Esse circuito de jeitos de morar, bem ou mal, também é muito interessante. Mas a verdade é que a estética acaba bastante pasteurizada em quase todas as cidades em que fui visitar. No Nordeste, por exemplo, a maioria com porcelanato, muitas com grade, muitas com câmera, com parabólica. É incrível como alguém pode achar que aquela estética é superficial ou mundana, ou leve, mas estética é ética. A estética é agredida por uma ética distorcida. Ter o tanto que temos de grade, de arame farpado, de câmera. Veja como destruíram as portarias do Rio, que nos anos 60 tinham laguinhos, carpas, mosaicos, eram todas modernistas. Hoje você tem grades, tudo foi fechado. A estética brasileira foi totalmente agredida pela insegurança e pela falta de educação. Quando falamos de como o visual se reproduz nas cidades, todos os assuntos se esbarram. A gente está na época da praticidade. Por que eu vou gastar dinheiro na manutenção da minha casa, se eu posso ter algo que é para sempre? Grade, parabólica, arame farpado. Nada é gratuito. Tem mil questões que passam pelo que é a estética do morar, sem que seja o julgamento do que é feio ou bonito. Aquela casa que é para rua, essa imagem icônica da porta aberta. Essa porta aberta acabou, e ela é uma metáfora. As ruas estão fechadas, as portas estão fechadas.

O que você acha que significa tomar um cafezinho na casa de alguém? Justo você, que deve ter tomado muitos pelo Brasil inteiro.
Nossa, quando não oferecem, eu peço. Até duas da tarde, eu sou viciado em café, mas depois eu corto completamente. Eu nunca sinto que estou indo gravar na casa de alguém, mas que estou indo visitar uma pessoa. Essa noção brasileira da visita resulta sempre em uma das primeiras perguntas: “quer alguma coisa?”, “aceita um copo d’água?”. Essa pergunta vem junto com a porta aberta. E, em muitos casos, ela acompanha cesta de pão de queijo, bolo, e muito mais. Inúmeras vezes eu aviso, “a gente não vai ficar para almoçar na casa”. Mas não interessa, me fazem almoçar independente disso. Nunca ser apenas um cafezinho me parece o jeito brasileiro de receber as pessoas, um movimento de muita gentileza, como uma deferência, uma comunhão. Algo, aliás, que me faz lembrar que sou péssimo, porque não tenho praticamente nada de café. Tomo café solúvel, não sou nem um pouco barista. Desde que seja sem açúcar, tomo café frio, meio gelado, no copo de requeijão. Claro, prefiro quente, moído, vindo de um grão especialmente colhido numa sombra raríssima. Mas eu gosto tanto que tomo de qualquer jeito. O cafezinho é um hábito profundamente brasileiro, que, para além da energia e dos benefícios que proporciona, também significa carinho.

Objeto de carinho
Muitas peças da minha casa eu ganhei ou comprei em alguma viagem. Essas duas garrafas de porcelana da fábrica portuguesa Vista Alegre são as raras peças que comprei aqui no Rio, mais precisamente no Shopping dos Antiquários, em Copacabana. Adoro passear nesse lugar, e elas estavam na vitrine de uma loja fechada. Elas gritaram: me leva com você! Eu liguei para o dono da loja, que tinha uma eterna placa “volto já” na porta, e obedeci ao pedido delas. Faz alguns anos que elas moram comigo!