Maria de Jesus, mãe de Mia Couto, no areal da casa da família em Beira. | Foto: acervo

Nasci numa pequena cidade costeira. Uma cidade colonial, chamada Beira, nesse preguiçoso e espreguiçado litoral de Moçambique. A cidade trazia no nome a marca de berma e margem. E estava certo esse nome: todos os dias o nosso chão era inundado pelas marés, milhares de caranguejos emergiam da areia, a vida fervilhando em turnos entre dois universos. Nasci na berma entre o grão, o sal e a água. 

A infância é um tempo de aprendizagem da fronteira que separa o dentro e fora. Vamos aprendendo a ter certezas: debaixo dos nossos pés há um chão que garantidamente nos sustém. Faltou-me essa lição. A minha terra-natal era uma água-natal. O oceano que eu acreditava habitar fora, morava dentro. Não era geografia, era ontologia. Essa ausência de fronteira talvez seja a mais importante lição: aprendi a não ter medo do indomesticável, aprendi a amar o que será sempre ingovernável.

Fui, confesso, uma criança pasmada, seduzido pelo mar, mas dele afastado por não saber nadar. Havia uma voz que me cuidava de avisar: se eu entrar no mar não haverá nunca regresso. Foi assim que, vezes sem conta, fiquei sentado na praia, olhando as ondas e invejando os meus amigos que voltavam de um mergulho nas águas do Índico. O que sentiam eles, o que brilhava nos seus olhos? Eu não sabia fazer a pergunta certa. A grande dúvida era outra: o que é ser mar, como se pode sair desse eterno ventre? Os meus amigos incentivam-me a que me nadasse junto com eles. Talvez eu dispensasse esse mergulho por causa da condição da minha cidade: uma cidade líquida, num chão fluvial. 

Naquele sítio, não era a hora que valia. O que prevalecia era o ciclo das marés. Meus pais me avisavam assim do dever de chegada:

– Tu volta antes da maré!

O nosso tempo era governado pelas marés. E as marés eram mandadas por pássaros. Assim se dizia. Um passarito cinzento chamava a enchente. Outro pássaro de asas brancas, convocava a maré baixa. Me encantava essa crença, o poder dessas aladas criaturinhas comandarem o imenso oceano. Na cidade da minha infância, o relógio tinha sido destronado. Eu era guiado por aves e inundações de maré. Essa era outra lição contra a arrogância humana. Podemos construir grandes barcos: mas não seremos nunca o maestro desta grande orquestra chamada Vida. 

Tudo isso sucedeu com o sabor das grandes lições: eu não dava conta que estava a aprender. Na varanda da nossa casa, ao final do dia, sacudia demoradamente os pés. Tarefa obrigatória, mas impossível de cumprir: a areia parecia emergir da pele. Dentro de mim, havia não apenas um oceano, mas uma margem feita de areia. Durante essa impossível limpeza, eu escutava, vinda da sala, a voz rouca do baiano Dorival Caymmi cantando “é doce morrer no mar”. 

Agora, em meus sonhos, não há paisagem sem mar. Adormeço e acordo num litoral onde se confundem nuvem, mar e corpo. Agora, todos os meus sonhos são anfíbios. 

E já preciso de um outro passado: a minha cidade ficará para sempre feita de maresia e espuma. E eu nunca mais saberei separar o sal da água.