#25EspaçoDesignInteriores

Pequeno mapa do tempo

por Bárbara Mastrobuono

Esta é uma história de amor. Uma vez me disseram que todos somos especialistas em algo que só nós conhecemos. Acho que sou especialista em não deixar o tempo passar. Em não esquecer que os nossos espaços carregam memórias, em encontrar amor dentro do silêncio. Esta é uma história de amor, por mais que nenhuma das pessoas envolvidas acredite nisso.

Meus avós me ensinaram a guardar tudo que tenho. Eu sempre soube que minha avó me ensinava isso, mas os efeitos das ações do meu avô só me foram revelados meses após a morte dele, enquanto fazíamos o inventário do apartamento. Talvez eu devesse começar do começo.

Minha família cresceu toda no mesmo prédio. Só a minha geração passou
a infância lá, mas todos crescemos, daquele jeito de aprender coisas, de perder pessoas e mudar. Um dia meus pais decidiram deixar o prédio de Pinheiros e ir para o Guarapiranga, morar em uma casa, e eu fiquei com medo, já que em uma casa não saberia exatamente onde todo mundo estava o tempo todo. A Victória está no quarto. A mãe está na sala. Enquanto minha família ocupava os cômodos de um lado, a família de minha tia ocupava os cômodos do outro, e minha avó e outra tia ocupavam os de cima, em um apartamento que tomava o andar inteiro e nos acobertava como uma tampa de jarro.

Minha avó sempre conversa de olhos fechados e, se fosse possível, eu gostaria de gravar tudo o que fala, porque o ritmo dela é como eu imagino ser o ritmo do meu sangue. Ela não chorou com a morte do meu avô porque sabe que todos nós morremos um dia e, se algum dia eu conseguir aprender isso, sei que vou ser uma pessoa melhor.

Quando ainda morávamos no prédio e minha avó nos emprestava um pirex ou uma caixa de sorvete vazia da Kibon, ela ligava meia hora depois no interfone para pedir de volta. Preciso dela, dizia. Na casa da minha avó, todos os objetos têm funções secretas que não teriam na de outra pessoa. A caixa de balas Valda serve para guardar remédio, assim como o pote vazio de iogurte grego e as latas de panetone escondem pães que já foram torrados e agora só esperam ser comidos.

A dona Marta parece ter guardado tudo o que nossa família já possuiu. Um dia, meu pai me levou pelo apartamento e explicou de onde veio cada um dos móveis. O gaveteiro grande veio da minha bisavó, a mesa entalhada meu avô comprou durante os dois anos em que moraram no Peru fugidos da ditadura. O quadro logo em cima, que mostra a família do menino Jesus, também foi feito por artistas peruanos e era da coleção do vovô, assim como a Sereia do Volpi e todos os outros que estão no apartamento. Uma vez, quando era pequena, um homem me falou que todas as luas em volta da sereia eram unhas que ela tinha roído e agora estavam dentro da barriga dela, e a moral da história era a de que não devemos roer as nossas unhas. Eu não roía minhas unhas e não passei a roer, mas é engraçado o tipo de besteira que os adultos contam para as crianças achando que não vão se lembrar para sempre da deles.

Todo mundo da família sabe que minha avó é uma acumuladora nata. No apartamento onde ela vive com minha tia, tem uns quatro quartos dedicados exclusivamente a guardar coisas, todas as coisas. Uma vez, encontrei uma lista, dentro de um dos armários, que tentava contabilizar todos os objetos do quarto. É uma lista de origem desconhecida, cujo cabeçalho exibe uma letra de mão arrumada, que nos informa: “Armário escritório lado esquerdo” e, logo abaixo: Tapetes e abajur; canos de aspirador de pó; mala de viagem (vazia); suporte p/ TV; bengala; bengala canadense/muleta; sacolas de papelão e papeis pardo e sacos de papel e cx papelão; ultrassom; saco c/ palha; sacola c/ sacolas; comadre; assento de cadeira de banho; banheira; argolas e pano de cortina; cx de papelão e sapato vazias; gavetas; 3 ap. de telefone; livros. A lista continua até se encerrar de maneira brusca com pisca pisca e aparelho de telefone, livros, mas seu esforço é louvável e penso nela como uma das grandes obras da literatura experimental.

Os nossos objetos são como mapas das pessoas que fomos um dia. Assim como minha avó, guardo tudo que já me pertenceu. Isso inclui todos os bilhetinhos que eu passava no colégio, escondidos em um estojo dentro de uma gaveta do meu quarto antigo na casa de meus pais. Todos os desenhos que já fiz na adolescência. Agendas de 2001 e 2002 que nunca preenchi e nunca virei a preencher. Fantasmas da pessoa que já fui, agora morta na passagem do tempo, mas viva por meio desses fósseis que escolho acumular. E toda vez que penso em jogá-los fora, já que sua existência pesa em mim ao entrar naquele quarto e porque meus pais até hoje me ligam perguntando se vou finalmente jogar fora aquele container de cadernos da sexta série, penso “mas e se um dia eu for arrumar o quarto e folhear esse caderno e ver essa frase que anotei na margem?” Não consigo roubar minha versão futura desse pequeno momento de surpresa e prazer. Assim nos comunicamos, por meio de objetos, através do tempo. Talvez desse jeito todas as versões de mim consigam se manter vivas.

O interessante da acumulação da minha avó é que, por muito tempo, conseguimos fingir que era só dela. Agora entendo que, dentro da casa dela, a família inteira se comunga por meio dos objetos. Todo integrante da família tem um móvel guardado na casa da minha avó. Aquele apartamento funciona como um museu vivo de nossa trajetória conjunta. A cama de solteiro do meu pai. A primeira cama de casal dos meus tios. A cômoda vermelha que comprei para o meu primeiro apartamento, que não tinha armário embutido. A fantasia de carnaval da Martina (a prima alemã que morou no prédio durante seis meses em 2009), que encontrei em uma sacola que havia sido sorrateiramente enfiada dentro de um Farnese guardado no quarto dos fundos. Deixar um móvel lá é praticamente um ritual de pertencimento, e eu me senti adulta talvez pela primeira vez no dia em que liguei para minha avó e perguntei “posso deixar o criado-mudo da menina que morava comigo aí no seu apartamento?”.

Agora que meu avô foi embora, aprendi que existem muitos tipos diferentes de acumulação e que, assim como olhos verdes, eles são transmitidos por genes recessivos. Minha avó era filha de acumuladores e, por casar com um acumulador, o gene sucedeu em fazer seu caminho silencioso pela nossa árvore genealógica. Agora, fica claro que eu não deveria me sentir culpada por ter encontrado uma entrada de cinema de 2007 no meu quarto, apesar de já ter me mudado quatro vezes desde o ano em que fui assistir a Zodíaco. Sinceramente, nunca tive chance.

Existe um corredor na casa da minha avó que contém todos os livros que já passaram pelas mãos da família, mas que não foram importantes o suficiente para seguir com os donos em seus novos lares. Desde a coleção de enciclopédias Larousse até o Apanhador no campo de centeio do meu tio, até os livros de adestramento de cachorro de meu pai da época do dálmata D’Artagnan. No apartamento do meu avô, existe um armário igual, que contém pastas e mais pastas azuis, todas rotuladas com um nome de artista e um ano, com reportagens e publicações a respeito de cada um. O meu avô deixou para trás uma biblioteca com mais de 3 mil títulos, entre eles coisas extremamente específicas, como A luta contra o analfabetismo em Minas Gerais e mais de cem gramáticas. De repente, o fato de eu possuir livros como Ataques de ursos pardos: onde ocorrem e como sobrevivê-los fez muito mais sentido. Assim como minha coleção de impressos de exposições, que junto já há mais de cinco anos e que se encontra cuidadosamente etiquetada e arquivada. Nunca havia entendido antes que aquilo também era uma forma de acumulação, mas, parada no meio do arquivo morto de meu avô, composto de prateleiras após prateleiras de caixas de papelão cheias de papéis, entendi que a acumulação vem em diversos formatos e cheiros, inclusive escondida atrás do formato da utilidade. Meu avô colecionava tudo quanto é coisa. Além de sua coleção de arte, também passou a vida a colecionar documentos e agendas, juntar rastros do seu ser ao longo dos anos, cada pasta como aquelas células mortas que descamamos ao longo da vida. Pequenos pedaços invisíveis de seu corpo deixados para trás em um apartamento vazio. Uma semana depois que meu avô morreu, um homem pulou do prédio ao lado e caiu morto na sua varanda. Do lado de dentro, os arquivos observavam tudo em silêncio.

Um dia, todos esses quartos estarão vazios. Os quartos do apartamento da minha avó, os armários dentro deles, as gavetas dentro daqueles armários. O armário do quarto onde cresci já não contém minhas coisas, e me dá uma sensação estranha o fato de eu não saber o que guarda agora. Minha família me ensinou a segurar o tempo perto do peito e sentir dor quando ele vai embora, mas talvez isso seja algo que todas as famílias ensinam aos seus. Minha avó, ao rezar seu terço todas as noites na sala escura, andando de olhos fechados na escuridão em torno da mesa, passando as bolinhas uma por uma entre os dedos. Meu avô, sentado na mesa da sala da casa dele, a escrever artigos a lápis sob a luz do abajur, a mesa uma pequena ilha na escuridão do resto do apartamento.

O tempo vai passar, o deles e o meu. Mas esta é uma história de amor. E o dia em que não tiver mais nada lá, nem todos os objetos que arrebanhamos cuidadosamente ao longo de tantos anos, embrulhados em plástico bolha e guardados em quartos fechados, ainda estaremos naqueles corredores; nossa pele, amor e os genes recessivos dos olhos verdes acumuladores.