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Hidrogênio verde: somos novamente o país do futuro?

O hidrogênio verde representa inúmeras oportunidades para o Brasil (e mundo). Por mais incrível que pareça, a despeito do contumaz projeto antiambientalista do governo Bolsonaro, nos vemos de novo como o epicentro de um possível amanhã renovável. Em um momento crucial para o futuro, ou o não-futuro, da humanidade, em tempos que clamam por mudanças reais no mais emergencial dos tons, os olhos sempre parecem se voltar ao país que abriga a maior biodiversidade do planeta.

Foto de Soonthorn Wongsaita | Shutterstock

Fica a questão: conseguimos bancar a responsabilidade? Na verdade, há quem queira bancar isso por nós — ou “nós”, com aspas de ironia, já que sempre existe uma parcela de interesse próprio no jogo da política. 

Hidrogênio verde (e de outras cores)

O hidrogênio é o elemento químico mais abundante e leve, além de possuir o maior valor energético. No entanto, raramente é encontrado de forma isolada na natureza. Pode ser obtido a partir de diversas fontes de matéria-prima, sendo utilizado em diferentes aplicações energéticas e não-energéticas. Se produzido a partir de fontes renováveis de energia, é fundamental para a redução de emissões de gases de efeito estufa, mas nem sempre é assim. Nas denominações por cores, que vão de acordo com as suas fontes primárias de energia, tem-se as seguintes classificações:

Hidrogênio preto: produzido por gaseificação do carvão mineral (antracito), sem CCUS (sigla inglês para Captura, armazenamento e utilização do carbono).

Hidrogênio cinza: produzido por reforma a vapor do gás natural, sem CCUS.

Hidrogênio marrom: produzido por gaseificação do carvão mineral (hulha), sem CCUS.

Hidrogênio branco: produzido por extração de hidrogênio natural ou geológico.

Hidrogênio musgo: produzido por reforma catalíticas, gaseificação de plásticos residuais ou biodigestão anaeróbica de biomassa, com ou sem CCUS.

Hidrogênio turquesa: produzido por pirólise do metano, sem gerar CO2.

Hidrogênio rosa: produzido com fonte de energia nuclear.

Hidrogênio azul: produzido por reforma a vapor do gás natural (eventualmente, também de outros combustíveis fósseis), com CCUS.

Não é necessária uma análise profunda para perceber que, na maioria das vezes, se trata de um processo poluente, tido como “sujo”. 

Além desse arco-íris, que, em seu fim, apresenta um pote de tesouro contaminado, há o hidrogênio verde (H2V), hoje em dia a grande menina dos olhos dos países que se preocupam em cumprir metas de descarbonização. Diante de tantos hidrogênios que não utilizam o processo de captura de carbono antes que ele vá para a atmosfera, não surpreende que o H2V seja tão cobiçado. Produzido a partir da eletrólise da água (processo que utiliza a corrente elétrica para separar o hidrogênio do oxigênio da molécula de água), com baixa ou nula intensidade de carbono, o hidrogênio verde utiliza energias renováveis para a sua produção, como a solar, hídrica ou eólica. Ou seja, ele é obtido sem emissão de CO2 — uma frase simples, mas rara, que faz com que as espinhas de ambientalistas se arrepiem de prazer. Um de seus poréns é a alta demanda de energia, sendo, portanto, mais caro. Por isso, é essencial que a fonte dessa energia seja limpa. 

No Brasil, por exemplo, em regiões com estações tanto de muito sol quanto de muita chuva, existem pontos com grande aberturas para a produção de energia eólica. No contexto da descarbonização do planeta em uma busca por maior sustentabilidade, ele pode ajudar o país a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa e atingir suas metas climáticas.

Geopolítica em jogo

É sabido nos quatro cantos do planeta que o Brasil é um dos maiores produtores de energia renovável do mundo, dono de um imenso potencial para produzir hidrogênio verde em larga escala. Sabe-se também que esse hidrogênio pode ser usado como uma fonte de energia para setores como transporte, indústria e geração de energia elétrica, o que impulsionaria em qualquer lugar o desenvolvimento de novas tecnologias e negócios. É por essas e outras que tem ocorrido uma espécie de “corrida por ouro”, sendo o ouro aqui mais verde do que brilhante. E o papel brasileiro nessa história é de suma importância, ficando com uma função ativa central que não se resume à submissão, afinal a produção e a exportação caminham juntos: a exportação de hidrogênio verde para outros países é de grande interesse, pois pode se tornar uma importante fonte de receita para o Brasil, uma vez que há uma crescente demanda global por combustíveis limpos e renováveis.

Um estudo da BloombergNEF projeta a terra brasilis como uma das únicas capazes de oferecer hidrogênio verde a um custo inferior a um-dólar-por-quilo até 2030. E mais: se a leitura for a longo prazo, pensando no ano de 2050, essa cifra pode cair para US$0,55/kg. Para viabilizar esse cenário tão promissor, segundo estimativas, o país precisará investir alto na indústria — algo em torno de 200 bilhões de dólares até 2040. E é aí que a Alemanha entra em cena.

Os europeus como um todo, mas sobretudo a Alemanha, estão de olho na energia limpa que o Brasil tem de sobra. Não por um acaso, o principal motivo da visita ao Brasil do chanceler alemão, Olaf Scholz, foi a viabilização da produção do hidrogênio verde. Essa presença germânica calorosa visa um objetivo claro: ter de quem comprar, com prioridade, o hidrogênio limpo tão importante para o futuro do mundo. Isso porque, por lá, é inviável pensar em uma produção dessas por conta própria. Para além do comprometimento louvável com a descarbonização, outro fator que tem grande influência nessa movimentação alemã é a guerra da Rússia contra a Ucrânia. O conflito, que já ocorre há mais de um ano, virou também uma ameaça à segurança energética alemã, que acelera o processo de transição rumo a fontes renováveis, já que tinha sua economia altamente dependente do gás russo, que, certa feita, foi barato.

A Alemanha desponta como provável solução também na possível problemática do transporte. Para que o Brasil se torne um grande exportador, algumas inovações logísticas ainda são necessárias. Para ser transportado em forma gasosa, o H2V requer muita pressão. Em forma líquida, é preciso resfriá-lo a -253 °C. Uma das alternativas é transformar o combustível limpo em amônia, NH3, pois assim o nitrogênio é capturado do ar, e a amônia pode ser transportada de 12°C a 15°C. Quando chegar ao destino, caso o produto precise ser convertido novamente em hidrogênio verde, mais energia será gasta no local para essa transformação. Por esse motivo, uma das possibilidades em discussão é fazer no Brasil o beneficiamento de matéria-prima que seria exportada e transformada na Alemanha, como minério de ferro. Em vez de consumir a energia alemã para fabricação do aço, o processo ocorreria no Brasil movido a H2V.  

Nordeste: estrela da companhia

Nessa história toda, quem mais tem a oferecer é o Nordeste. No final de 2023 — ou, no mais tardar, no começo de 2024 —, a região sediará a primeira fábrica de hidrogênio verde do Brasil, no Polo Industrial de Camaçari, na Bahia. Nada poderia representar mais o potencial grandioso que o Nordeste tem na cadeia produtiva de hidrogênio verde. O estudo Mapeamento das Cadeias de Mobilidade, sobre o hidrogênio verde no panorama energético do Brasil e do mundo, aponta os caminhos: o perfil de geração elétrica da região do Nordeste — com 84% de fontes renováveis — coloca esses nove estados em posição de vantagem, já que a eletricidade renovável é chave para a produção do H2V. 

Reprodução: Energix Energy

Hoje, cerca de 49% da eletricidade do Nordeste é eólica onshore (cujas turbinas são instaladas em terra). Enquanto os estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Bahia, Pernambuco e Piauí possuem projetos para a instalação de hubs de hidrogênio verde, integrados a projetos de eólicas offshore (turbinas instaladas no mar). De acordo com o estudo, esse cenário geral diminui os custos iniciais do investimento e reduz as possíveis perdas energéticas.

Se é verdade que, como diz o outro, não se consegue escapar da responsabilidade de amanhã esquivando-se dela hoje, presentemente o Brasil tem a faca e o queijo na mão. Se o talher alemão é pontiagudo demais e o alimento, apesar de vistoso, eventualmente dará indigestão, logo saberemos. O que se sabe, ou o que se projeta, é que, de acordo com a Wood Mackenzie, o Brasil responderá por cerca de 6% do suprimento total de H2V do mundo até 2050, com o mercado ganhando escala após 2030. 

Portanto, que se tenha em mente esse verbo estranho, muito mais forte a cada ano que passa: descarbonizar. Esse é o caminho. E o Brasil, ao que tudo indica, se os ventos baterem a favor de um futuro mais verde, levará o mundo até lá.