por Marina Acayaba e Juan Pablo Rosenberg
fotos de federico cairole
Falar da terra é falar da gente da terra; gente de fala simples, carregada de saberes, histórias, lendas e tradições. Zé Taubinha, Burrico, Costeleta; a Viúva, o Delegado… Personagens de uma realidade quase fantástica preservada em pleno Vale do Paraíba do século XXI. A cultura da roça é legado oral, resistente, transmitido na moda de viola, no capricho das festas; imagens vivas que se moldam no ritmo da prosa. Falar da terra é também falar do tempo, de outro tempo, do presente sem pressa; do tempo-terra, que transcende a métrica do homem, pois pertence à natureza. Tempo alongado de ouvir e olhar. De deixar a vida simplesmente acontecer, de ver brotar.
À beira da estrada que leva a Ubatuba, uma pequena placa aponta à esquerda: Catuçaba. Ao dobrar rumo ao vilarejo, as sinuosas curvas da estradinha vicinal deixam o mundinho para trás, dando lugar ao mundão de entre morros que trazem os cheiros da terra em seus mil tons.
A vila surge com suas casinhas coloridas enfileiradas, as senhoras proseiam em cadeiras puxadas à calçada, o burro amarrado na sombra próximo ao Bar do Dito do Bar. É terça-feira? Domingo? Tanto faz. O tempo parece ter se esquecido de andar.
Da rua principal parte a estrada do Pinga, caminho de terra no meio da mata – cheiros da terra e da mata. Ela corta o Palmital, cruza o Francês, sobe pelo Dito e Anésio, até alcançar o Alto do Diamante, na exata divisa entre São Luiz do Paraitinga e Cunha, onde a vista avista o encontro da Bocaina com a Mantiqueira. Mundão. É ali que fomos parar, na fazenda Mato Dentro, onde hoje criamos nosso segundo lar. Nas primeiras vezes, aquilo parecia um fim de mundo. Hoje é caminho da roça.
Passada a porteira verde no alto, penetra-se fundo o vale por 2 km. A casa fica lá embaixo, no coração do vale. Casa caipira, ensina o saber popular, se constrói em fundo de vale, protegida do sol quente e do vento gelado, em solo fértil bem servido pelas águas.
E, para falar daquela pequena casa de pau-a-pique, passamos pela história de Maria Martins, mãe de Seu Agenor – ou “Seu Renô”, o mestre-cavalhada –, Afonso, e Anésio. Mulher forte que em quatro cômodos criou sozinha 20 filhos; alguns paridos, e outros que aqui resolveram ficar. Dizem que foi uma casa de festa e de boa acolhida, pouso para os romeiros rumo a Aparecida.
Na aduela de madeira, a data indica o ano de sua da construção: 1879. É necessário pedir licença para habitar esse lugar. Observar, aprender, respeitar. Dialogar com sua história. No arco do tempo, nossa presença é circunstancial.
Quando chegamos, o lugar estava desabitado há décadas. Uma chaleira de ferro resistia sobre o velho fogão a lenha vermelho em ruína. A parede de taipa com tramas à mostra deixava ver camadas de tinta recobertas ao longo das gerações. Uma foto antiga na parede nos revela um grande embasamento de pedra posteriormente aterrado, sobre o qual a casa se alicerça. A intenção era clara: recuperar, restaurar… desaterrar. Aos poucos, desde as primeiras visitas, o projeto foi nos contando o que queria/devia ser: construir em diálogo harmônico com a preexistência. Da casa original mudamos pouco; uma única parede interna, para unir um quarto à sala a fim de melhor acomodar a família. No centro, colocamos o novo fogão a lenha, coração da casa que tudo dá: o leite, o pão, a água quente do banho. Sua fumaça saindo pela chaminé indica que a casa está novamente habitada.
Havia, no entanto, e sobretudo, a necessidade de domesticar o lugar, há muito abandonado junto à abundante mata do fundo do vale. Além do restauro da sede, foram três as intervenções principais, entre as quais um longo muro em paralelepípedo antigo, comprado de uma fazenda próxima, que acomodou a topografia a montante, delimitando o espaço doméstico junto à imponderável natureza.
Paralelo à casa que abriga nossa família com seu telhado de barro em quatro águas, implantou-se, em respeitoso contraste, um volume puro e longilíneo em laje plana, para acomodar os hóspedes. Seu embasamento foi também construído em pedra, sobre o qual pousa protegida da umidade a nova construção caiada de branco, como a preexistente. Um pátio seco de tijolo aparente une e opõe as construções, cortado pelo som de um fio que conduz a água – e a vista – rumo ao vale enquadrado entre as casas. À frente, destacado da casa e debruçado sobre o vale, um segundo pátio, terreiro de tijolos, abre espaço para o fogo. Ali sentamos em volta da fogueira, ali cozinhamos.
Os tijolos dos pisos são de olarias artesanais que encontramos na região. Os oleiros Zé Taubinha e Burrico utilizam, ainda hoje, processos vernaculares de beneficiamento da terra, amparados por tração animal e fornos rudimentares. De suas ricas histórias e sabedoria, aprendemos sobre o elemento terra e sua transformação, sobre a expressão e utilidade de cada tijolo, a depender do barro, de sua mistura, dos moldes e dos processos de queima.
Na fazenda Mato Dentro, o dia a dia é de descanso e permanente aprendizado. A horta está a todo vapor. A seu tempo, o pasto está se regenerando em mata, e o pomar começa a dar seus frutos. É um privilégio podermos, na rica tradição da roça, plantar uma nova história com nossos filhos – Leon, 8, e Eva, 6 –, para que aprendam desde cedo a beleza sutil e poderosa do tempo, da prosa e da terra. Nesse caminho, a certeza que temos é a de que hoje queremos andar mais devagar, pois é preciso paz para poder sorrir, e é preciso a chuva para florir.