Aislan Pankararu e o mistério: ondas fractais em plena força
A flecha artística de Aislan me atingiu em meados de 2021, pelo Instagram: impactado com a produção incansável e inédita desse jovem artista, entrei em contato: “Olá, boa tarde, tudo bem? Sou curador e gostaria de conhecer mais sobre seu trabalho.” A partir daí, seguiram-se incontáveis mensagens, uma conversa por videochamada e um convite que fiz para o então estudante de medicina da Universidade de Brasília (UnB), prestes a se formar: fazer parte da residência artística que eu estava organizando no Kaaysá, na Praia de Boiçucanga, em São Paulo. Dez dias depois, lá estava Aislan. Dada sua habilidade pictórica, em desenho sobre kraft, transposta à tela pela primeira vez, o então médico se formou artista, e com ele aprendi inúmeras relações entre ciências biomédicas e arte, entre universos ínfimos e a visualidade de suas obras, eivada pelos padrões e ritmos das células e moléculas — algo que, para o homem branco, geralmente são apenas elementos constitutivos da matéria observados pelo microscópio, mas que, para Aislan, são representações da sua maior ancestralidade. Isso sem falar em propriedades curativas, atribuídas por ele tanto à medicina como à arte. Rebelde e contestador, Aislan soube trilhar seu caminho com autonomia e liberdade, e digo isso como quem o viu “saindo do ovo da cobra”, como ele mesmo afirma. Hoje ele é representado pela Galatea Galeria, onde realizou sua primeira mostra individual, em novembro de 2023, com curadoria de Lisette Lagnado. O artista de 33 anos também tem um trabalho que integra a mostra Histórias indígenas, no Museu de Arte de São Paulo, o Masp.
Todo esse enorme preâmbulo para falar do que importa: a produção de Aislan. Por sorte, já tomei ayuahuasca algumas vezes (uma delas com um maldito xamã Hanilkui, deixa ele), mas digo isso porque a aproximação com a ayuahuasca me parece fundamental pra entender a onda de fractais inexplicáveis em movimento orgânico, contíguo, infinito. E como pessoa branca, distanciada dessa realidade, uspiano de formação eurocêntrica, olho com deslumbre para essa força pulsante calcada na planta e na organicidade celular. Num tempo cada vez mais dissonante, com pandemias que parecem só começar, degelo de calotas polares, enfim, o caos, ter contato com uma produção artística que problematiza o conhecido a partir do elemento celular mais elementar e do encantamento provocado por ele me parece um vislumbramento instigante e necessário — quase da ordem da “miração”. Daí a força de Aislan, que, com cosmovisão, transforma tempos, movimentos e traços — e pontos (ele é obcecado por bolinhas). Eis que o médico-artista-curandeiro nos receita uma medicina que pode causar rebuliço. Incontrolável. E se soma a isso seu questionamento quanto a uma visão indígena exclusivamente amazônica, dado que ele vem e fala da caatinga. Tudo isso nos faz rever de onde falamos e também indagar sobre a multiplicidade de visões e cosmogonias presentes apenas no território chamado Brasil.
Com isso, torna-se urgente dizer: nada de se ater à beleza por si. O belo no trabalho de Aislan convida à luta — resta encontrar qual luta transformadora é essa. Assim como ele descobre o mundo através do fazer, primeiro pintando em posca sobre papel kraft, agora em telas de linho, em couro, bordado em voal ou ainda em escultura. Isso deixa claro que o suporte não realiza, só informa, mas o problema que ele alcança segue se mostrando inalcançável, e a elaboração sobre o fazer segue sendo a posteriori, dada a urgência de realizar e de se apresentar. O que ele alcança, porém, segue, de certa forma, inalcançável, porque é mistério é dessa ordem micro-macrocósmica ligada ao funcionamento de tudo. Mesmo para Aislan, a elaboração sobre o que faz parece ser a posteriori, dada a urgência daquilo que pressente e manifesta.
Alheio a rótulos, livre e contundente, Aislan nos apresenta, por meio de seus trabalhos, um cosmo complexo, muito mais ligado ao sentir do que à racionalização. Entretanto, se trata de um sentir conectado a algo imenso. Aislan apresenta em seu trabalho um tipo de junção de firmamentos, conhecimentos, sensações — algo que para nós tem também o efeito de um universo de perguntas em aberto.
Essa falta de resposta em sua produção, uma progressiva elipse, paradoxalmente produz conexões inesperadas em todos os suportes e as técnicas que utiliza. Esse paradoxo de seu trabalho, esse inesperado, esses delicados momentos de espanto que nos oferece e que talvez ele próprio não entende completamente são a impressionante e crescente força de sua produção: a força de um mistério.