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Capricho de mulher

por Alinka Lépine-Szily

O presente de Alinka para Noemi Jaffe

Eu nasci na Hungria e lá vivi até os 14 anos. Em 23 de outubro de 1956, quando a Revolução Húngara eclodiu, eu estava lá. Nesse dia, minha mãe chegou em casa e falou: “Vamos, vamos, porque estão derrubando a estátua de Stalin”. Ela se referia à imensa estátua de Stalin que ficava numa praça muito grande, em Pest, onde eram realizados os grandes desfiles de 1º de maio. A partir daí, a gente decidiu ir embora. No fundo, minha mãe e eu não queríamos ir, mas eu tinha um irmão de 17 anos, e ele sumia por vários dias durante essa época. Meses depois, em novembro, quando a Revolução já tinha sido derrotada, meu irmão nos confessou: “Eu preciso ir embora, porque participei de coisas. Eu tenho medo”. “Bom, você não vai embora sozinho”, respondeu minha mãe, que tinha perdido meu pai em 1945, em um dos últimos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. “Se você for, nós vamos todos”.

Saímos de Budapeste sem saber para onde ir, e nunca imaginei que acabaríamos no Brasil. Primeiro, caminhamos noite adentro em direção à Áustria, até encontrarmos uma aldeia. Lá, minha mãe telefonou para parentes que moravam em Viena, e eles nos acolheram durante algumas semanas. A ideia de então era morar na Alemanha, aproveitar que minha mãe dominava a língua e ficar na Europa. Fomos de trem e chegamos a um campo de refugiados na Baviera, que descobrimos ter servido como campo de concentração anos antes. Ainda estavam lá, inclusive, os lugares das câmaras de gás. Vivemos por semanas nesses grandes barracões de madeira, improvisados no formato de dormitórios com beliches, enquanto minha mãe passava o dia procurando emprego, mandando cartas para todos os lados. Mas, mesmo ela tendo doutorado em Química, a Alemanha de 1957 não estava recuperada, o que significava que conseguir emprego e moradia era um grande desafio. Foi quando percebeu que ficaríamos anos vivendo da ajuda do governo que minha mãe, uma mulher impaciente e decidida, declarou: “Sabe de uma coisa? A Alemanha não tem futuro. Vamos embora”.  

Voltamos para Viena ilegalmente, porque era proibido retornar. Tivemos sorte. Lá, nos registramos para vir ao Brasil, onde tínhamos parentes, fruto de um empreendimento do governo brasileiro dos anos 30, que trouxe muitos húngaros para construir uma fábrica de explosivos no interior de São Paulo. Nesse meio-tempo, minha mãe conseguiu um emprego como tradutora no consulado americano de Viena. Ofereceram a ela a oportunidade de irmos para os Estados Unidos. Lembro de quando ela chegou em casa dizendo: “Bom, tem a chance de ir para os Estados Unidos. Vocês escolhem. O que preferem?”. Imagina, eu tinha 15 anos, e meu irmão, 18. No nosso imaginário, o Brasil era uma aventura, com a Amazônia, os índios, as cobras e a selva. “Queremos ir para o Brasil”, dissemos. Naquela época, eu estava convencida de que fomos nós que decidimos. Mas, hoje em dia, acho que minha mãe fez uma pequena encenação. Ela não queria ir para os Estados Unidos, porque lá meu irmão imediatamente seria mobilizado para ser soldado, teria de servir na guerra, porque os Estados Unidos estão sempre envolvidos em uma, e ela queria ir para longe dessa realidade. Até porque o horror da Segunda Guerra ainda estava vivo na nossa família, e perder o marido havia sido o bastante. 

Viemos para o Brasil e nunca nos arrependemos. A viagem de navio foi fantástica. Saímos de Gênova e fomos parando. Primeiro em Marseille, depois Portugal, Dakar, Recife, Rio, até chegarmos em Santos. Ali, meu tio estava nos esperando para pegarmos um ônibus em direção a São Paulo. Lembro que foi emocionante ver a estrada velha de Santos, cheia daquelas curvas e aquela vegetação exuberante. Chegando da Europa do pós-guerra, a imagem desse verde em abundância marcou nossa chegada e segue viva em mim até hoje.

Desembarcamos sem nenhum tostão, claro, sem dinheiro para se instalar. Mas o fato de a minha mãe falar línguas sempre abriu portas, e ela logo conseguiu emprego em uma fábrica que tinha laboratórios químicos. Em seguida, fomos encontrar a colônia húngara, onde estavam os padres beneditinos húngaros que fundaram o Colégio Santo Américo, que existe até hoje no Morumbi. Nós os procuramos porque sabíamos de um grupo de escoteiros que era coordenado por eles. Sem saber falar uma palavra de português, não havia condição de frequentarmos a escola, e o grupo serviria como uma forma de socialização. Junto aos escoteiros, fizemos muitos amigos – amizades que duram até hoje, como a da minha amiga e tradutora Edith Elek. 

Foi a Edith que me apresentou à Noemi Jaffe, quando ela buscava alguém que tivesse estado em Budapeste durante a Revolução Húngara. Quando a Noemi me telefonou, ela me contou que estava escrevendo um livro sobre a Revolução e gostaria muito de conversar comigo. Bom, eu aceitei, claro, e foi um encontro ótimo, de simpatia mútua. Passamos muitas horas compartilhando histórias. Anos depois, em 2015, recebi um e-mail da Noemi dizendo que o livro estava pronto e me convidando para o lançamento. Na época, eu estava viajando a trabalho, e pedi que minha filha e uma amiga dela fossem no meu lugar. Para minha surpresa, foi somente com a publicação do livro Írisz: As Orquídeas, que descobri que a protagonista da história havia sido inspirada em mim. Recebi o livro com uma linda dedicatória da Noemi, e esse foi um dos presentes mais bonitos que já recebi, algo que me deu uma alegria incomparável. Durante o lançamento, a Noemi teve a sensibilidade de nos convidar, minha filha e eu, para jantarmos em sua casa. Mas aconteceu, então, essa coisa que é São Paulo, que tudo engole, e o convite acabou não se concretizando, e nunca mais nos encontramos. 

Passou-se um tempo, e recebi um novo e-mail da Noemi, dessa vez me convidando para participar dessa edição da Amarello. Quando pensei em quem eu queria presentear, rapidamente me surgiu a imagem da Noemi. Eu não tive dúvida de que era o momento certo de retribuir de maneira singela um pouco da alegria que ela me proporcionou com o seu livro. Por isso, escolhi como meu presente desta edição preparar um doce húngaro que remetesse à minha infância.

O Capricho de mulher (Nói szeszély, em húngaro) é um doce que evoca o aroma e os sabores do país que conheci quando pequena. Por ser simples, fácil e de ingredientes baratos, ele se tornou muito popular na Hungria, especialmente pela geleia de damasco, que acrescenta um sabor muito especial. Parece que hoje em dia ele saiu de moda, mas era um verdadeiro sucesso nos anos 50. Sabendo que a família da Noemi também é de origem húngara, imaginei esse doce como uma retribuição. Um presente que nos trouxesse conexão, afeto e, ao mesmo tempo, fosse símbolo de agradecimento.