#33InfânciaArteCinema

Ressignificar o passado: François Truffaut e a infância

por Willian Silveira

Jean-Pierre Léaud como Antoine Doinel em Os Incompreendidos (1959)

Como se não bastasse ter de fazer um bom filme, os desafios de um diretor de cinema são inúmeros. Fiquemos com o mais singelo e insuspeito: saber dirigir uma criança em cena. Os empecilhos não são poucos. O set de filmagem é um espaço frio, rígido, calculado e desinteressante. O nível de tensão é alto. As cenas repetidas até atingir a luz correta, o movimento preciso ou o diálogo desejado são desestimulantes. Após horas de gravação, sobrevive apenas o silêncio e o cansaço. Em um ambiente hostil ao lúdico, harmonizar a dinâmica das câmeras com o espírito infantil é uma lição que ninguém ainda ousou ensinar.

A dificuldade é tão conhecida que, costuma-se dizer, quem consegue dirigir um pequeno pode acumular até outros defeitos que estará desculpado. Pensemos nos grandes diretores. Por via de regra, fizeram – ou têm feito – o possível para retirar dos seus roteiros a necessidade de lidar com dois tipos de personagem: animais e crianças. Afinal, reconhecer um contratempo é virtude apenas menos louvável do que evitá-lo de antemão.

Exceção à regra, François Truffaut destacou-se por ter tematizado a infância e conduzido com aptidão singular as atuações mirins. Nascido em um ambiente familiar fraturado, na Paris de 1930, Truffaut acabou sendo criado pela mãe e pelo padrasto, sem jamais ter conhecido o pai biológico. Tal ausência somou-se à disfuncionalidade de um lar tomado por uma série de problemas – das dificuldades financeiras às relações extraconjugais –, resultando em uma criança revoltada, agressiva e contrária a qualquer forma de autoridade. Não demorou muito para que o perfil de insubmissão encontrasse problemas. Fundador de um dos movimentos mais importantes da história do cinema, a Nouvelle Vague, Truffaut foi um menino indomável, conhecido por pequenos furtos, transgressões e pela expulsão da escola em que estudou, acontecimento que o marcaria profundamente, talvez como um segundo abandono.

O Amor aos 20 Anos, de François Truffaut (1962)

Anos mais tarde, o diretor francês levaria a experiência infantil para o cinema. Se uma das dicas mais difundidas entre os escritores é a orientação “escreva sobre o que você conhece”, Truffaut parece ter seguido o ensinamento literário a sério durante a preparação do seu primeiro longa-metragem, em 1959. Para a estreia na tela grande, o diretor revisitou a infância, aproveitando-se das memórias acerca de duas fragilidades dos adultos que o cercaram – o autoritarismo e a indiferença – na composição do cenário de Os Incompreendidos.

O filme nos apresenta a história de um garoto que cresce sem receber afeto e atenção. Os adultos ao seu redor – invariavelmente indisponíveis – o percebem como um problema, circunstância que cria a atmosfera perfeita para que ele esteja muito próximo de se envolver com o crime. Ironicamente, é a indiferença alheia que marginaliza o protagonista, Antoine Doinel, e o impede cada vez mais de contemplar os anseios da sociedade.

Concebido de maneira particular, Os Incompreendidos marcaria um evento de inúmeros significados na vida de François Truffaut. No campo profissional, foi responsável pela inauguração de uma carreira de prestígio, além de iniciar a famosa parceria com o ator Jean-Pierre Léaud, alter ego que estaria presente em outros cinco filmes do diretor: O Amor aos 20 Anos (1962), Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e O Amor em Fuga (1979). No campo pessoal, Os Incompreendidos foi o símbolo de uma vitória. Diante da falha dos sistemas – o familiar e o social –, o filme aponta para um horizonte em que não apenas Truffaut é socialmente reconfigurado, colocando-o em uma posição que antes lhe era dita como impossível – a de poder vislumbrar um caminho de sucesso e relevância –, mas também constata o defeituoso olhar dos adultos, contaminado por muita expectativa e cobrança. Doinel e Truffaut representam uma linhagem, por assim dizer, que aponta para a noção contraintuitiva de que os jovens podem muito mais quando não são criados com a finalidade de preencher o vazio de quem os criou. De que pode-se mais quando as crianças não são outra coisa que elas mesmas.

Na cena final, a corrida pela praia em direção ao mar tornou-se icônica na literatura cinematográfica. É certo que Truffaut e muitos de nós acompanhamos os passos de Doinel na busca por ressignificar o passado. Ato que, em muitos casos, significa preencher a memória da infância com aquilo que ela foi, e não com aquilo que deveria ter sido. O menino que tanto desejava ver o mar está mais próximo do que nunca de realizar essa façanha. Mas há uma subversão. A câmera em zoom se aproxima do protagonista, que dispara um olhar perplexo contra o espectador. Quanto mais livre se percebe, mais assustado se apresenta. Por mais que digam o contrário, seremos sempre Antoine Doinel – aquele menino perplexo diante das possibilidades da vida.


Willian Silveira tem formação em Letras, Cinema e Filosofia. É crítico de cinema, colunista de O Estado de S. Paulo, e escreve sobre arte, cultura e sociedade.

Originalmente publicado na edição Infância

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