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Notas para um terrorista moral

por Carlos Andreazza

Tudo bem que já não se sequestre aviões (romanticamente) como outrora. Os tempos passam, as modas mudam, as passagens ficam baratas, as práticas se tornam anacrônicas e/ou vulgares; tudo isso é tão orgânico (e vital) quanto humano (e desumano) que as pessoas se valham de atitudes extremas – uma bomba ou um bumbum de fora – para chamar a atenção.

O terrorismo, mortal ou meramente ambiental, é a mais rigorosa modalidade de propaganda já constituída; e nem o Boninho terá compreendido as infinitas possibilidades da televisão ao vivo com a mesma clareza dos terroristas.

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Descobri, graças a Johan Grimonprez (autor do instigante filme Dial History), que as técnicas ancestrais que uso para fugir dos atores de teatro interativo – jamais sentar no corredor e nunca buscar o olhar do algoz – são as mesmas historicamente recomendadas aos que não querem ter o pescoço degolado por um sequestrador de avião.

(Incontornavelmente seguro, porém, é não andar de avião e, sobretudo, não ir ao teatro).

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Poucas palavras foram mais raptadas pelo clichê psiquiátrico que paranoia. Sei que muitos ficam milionários (ou viram presidentes da Venezuela) explorando delírios sistematizados vagos e cafonas; mas eu vou direto ao ponto, com a exatidão decorrente do notório saber: a única estirpe de paranoia que se deve temer é ciúme crônico de mulher (tenha ela razão ou não).

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Só recentemente tomei conhecimento de que o bêbado maluco aqui do bairro – que nos cruzava a porta cantando sambas-enredo do Império Serrano em francês – era depressivo, bipolar, esquizofrênico e dependente químico; e soube que já não poderia (deveria) mais chamar por Negão o amigo fraterno a quem sempre chamei por…Negão.

Pela mesma época, fui também informado de que vivíamos um poderoso drama, o aquecimento global, que de repente botava o planeta a contar os últimos giros, embora antes Hollywood devesse produzir todos os filmes sobre o fim do mundo (e apesar de que, em meus trinta anos, tivesse já experimentado muito mais calor e muito mais frio aqui nesta província do Leblon).

Aquele foi o verão (ou seria inverno?) em que o pavor presente – o terrorismo contemporâneo – consolidou dois grupos associados pesos-pesados: os politicamente corretos (ou ONGs) e os ambientalistas (ou ONGs).

E nada nunca mais foi como antes.

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Em qual momento um atentado – o 11 de setembro, por exemplo – deixou de ser episódio extraordinário para se esparramar em perenidade? Quando foi que aquela ocorrência – tão nefasta quanto efêmera – veio e simplesmente ficou, aboletada, fundida nos meios como lidamos com o mundo e com os outros?

Quando?

Subitamente, o terrorismo – aquele, clássico, com sequestros, bombas etc. – deixava de ser evento pontual para se desdobrar em permanência e, pois, em possibilidade. Um medo baixinho, sem explosões ou faces definidas; antes de tudo, ameaça, patrulha, desconfiança e, logo, licença para os maiores assaltos à democracia e às liberdades individuais. Um medo que espreita; que é um estado mental, hipocondria social (e que está sempre a um passo da histeria).

Ao dobrar da esquina… O terror! O terror! O terror!

Exagero?

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Brasileiramente, tudo afinal ecoou no preciso instante em que o jornalismo transformou-se em assessoria de imprensa e o politicamente correto virou movimento – “Basta!” – da classe média zona sul (foi um ai-jesus)! A bourgeoisie carioca estava cansada, já não aguentava mais a impunidade, a tamanha barbárie de traficantes cujas balas-perdidas encerravam-se em nossas crianças – e então decidiu levar Fernando Gabeira a sério.

Aquele foi o verão (ou seria outono?) em que Zuenir Ventura ganhou coluna em jornal, a crônica criminalizou a polícia e se pôs a serviço do onguismo, e o AfroReggae de repente se tornou o futuro (e a esperança) do Brasil.

E nada nunca mais foi como antes.

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O medo individual só raramente resulta em reação individual. Para tanto, os medrosos contam (contavam) com o governo. Mas e se este for corrupto, segundo a imprensa indignada, culpado de todos os males? E se o político e a política – tudo coisa ruim – estiverem também criminalizados, lá no degredo ético para onde mandaram a polícia?

Quem doravante protegerá a sociedade? (Afinal, alguém precisa lucrar). Quem pegará na mão dos ceguinhos?Ora, é simples: uma ONG. Ou milhões delas – todas curiosamente financiadas pelos… governos!

(Então: “Ficha limpa” neles)!

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Os governos – os políticos – são injustiçados?
Não, não é isso. Mas que tal ampliarmos a lista – o bloco – dos sujos?
Há mais de trinta anos, alternando vigarices, com maior ou menor competência e, logo, irresponsabilidade, todos os governantes do Rio conjugaram formas de adiamento e embromação, retardando-evitando os choques e empurrando o problema das drogas para os sucessores, e investiram em acordos tácitos espúrios e precários que, a rigor, cultivaram (em silenciosa estufa) o clima de ameaça-medo-terror constante: o tráfico podia controlar, como desejasse e sem maiores incômodos repressivos, os morros, mas desde que minimizasse os delitos no asfalto; pacto ao qual compareceu – agradada – a classe média (olha ela aí), que assim teria a segurança possível se com efeito indisposta a abrir mão do pó (ou como lhe restaria a vida social ou o glamour)!?

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Pegue o trecho acima, adapte a qualquer nação e a seus conflitos – da guerra no Afeganistão ao flagelo do Haiti, do bolsa-família brasileiro à velhacaria ideológica cubana – e repare em como o terror permanente financia a mais lucrativa (e viciante) indústria (elite) já erguida pelo homem: a da exploração da miséria (difícil será achar quem não a integre).

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Citei o filme Dial History – por meio do qual Johan Grimonprez radicaliza (e denuncia) a linguagem sensacionalista do que se convencionou chamar por media – e preciso lhe sublinhar o ritmo quase enloquecido da montagem, que consiste numa sucessão cronológica febril de sequestros de aviões mundo afora: eventos espaçados em um ou mais anos, cada qual com seus pormenores políticos-ideológicos-religiosos, normalmente desconexos entre si, no entanto apresentados em sequência, como se ávidos diariamente, um atrás do outro, e sob a mesma motivação; e logo se estabelece a massa do pavor, o grande lixão do medo, o espetáculo do pânico…

Pergunto-especulo: haverá neste desenrolar o instante em que o terror se desliga do terrorismo para assumir e desenvolver uma existência autônoma e multiplicadora na voz do Datena? Haverá o momento em que a reportagem do fato (do terrorismo) se transforma num terror (fato) novo, independente? Haverá aquele átimo em que o veículo deixa de noticiar terrores e terrorismos para amplificá-los e mesmo causá-los?

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E eis que chegamos ao verão (ou será primavera?) em que fumar cigarro é pior que fumar maconha.

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Uma questão muito séria: o Rio de Janeiro está mais violento hoje ou seremos vítimas do acúmulo de violências? A cidade é mais barra-pesada ou foi simplesmente o tempo que passou e as histórias-mazelas individuais que se sobrepuseram? O Rio vai mais agressivo ou tão-só ricochetearão as memórias? O crime é de fato crescente ou ora terá apenas mais instrumentos para repercutir?

Pode-se pretender uma atitude blasé ante os estímulos – midiáticos – que nos empurram ao curso do medo. Pode-se também desprezá-los; ignorar-lhes a influência. Pode-se quase tudo a propósito, desde que se faça a seguinte reflexão, importantíssima para a regularidade das noites de domingo: o que será do Fantástico – o “show da vida” – sem o medo?


Carlos Andreazza, fundador do site Tribuneiros.com e editor da Capivara Editora, é co-autor do livro Contra a juventude.