Eu choro com o silêncio da Vivi e do Mario*, o silêncio que dividiram juntos, Mario contando: “Quando o sol esquentou, nos olhamos, os mais novos velhos amigos. Perguntei seu nome. Vilma, ela respondeu. Vilma, repeti.”
A Glória e seu Cortejo de Horrores… Na ocasião da polêmica do feminismo versus Fernanda Torres, me irritei demais que a criticassem. Senti a mesma coisa quando chamaram Caetano de pedófilo, agora. Cheguei a me posicionar em defesa da Fernanda, mas por Caetano contive meus impulsos após ter engolido as minhas próprias palavras junto com o mea-culpa.
Eu não entendia. Com quem estávamos falando quando falávamos de feminismo? Porque, aqui em casa, ele queria a barraca azul; ela, a vermelha. Adivinha qual cor de barraca compraram? Ela queria passar a Páscoa em Trancoso; ele, no Rio. Adivinha para onde foram?
Mas é óbvio que o Brasil não é a minha casa. A mulher, no Brasil, não manda em tudo, nem vai para Trancoso. Estamos a falar com um mercado que paga menos, uma sociedade que enxerga a mulher como um buraco, um homem doente que bate no corpo frágil.
Mais alguma coisa na mulher, além do corpo, é mais frágil?
Foi um homem que me falou que é científico (médico de renome, não qualquer um): o homem não consegue pensar em duas coisas ao mesmo tempo.
Tem um lado superior nisso, único: homens conseguem manter hobbies. O futebol de quarta à noite, o pôquer de terça. Pode parecer bobagem, mas o hobby é uma atividade fundamental para desestressar. Como uma meditação. E não, a mulher não consegue manter o compromisso de esvaziar os pensamentos. O baralho com as amigas vai para as cucuias se houver um problema em casa. Se o filho chegar triste da escola, cancela. Se existe alguma tristeza, fica para a semana que vem.
Um homem não cancela o pôquer, ele vai. Desliga a notícia do câncer de próstata do melhor amigo (porque o bichinho não comporta dois pensamentos ao mesmo tempo, como já falamos, e que é científico), e liga o botão: jogar bola.
É motivo de inveja para todas nós, mulheres, aqui na manicure, manicure nova (a Nelma está de licença), das unhas muito compridas. Ela tende a limpar as sobras do esmalte na minha cutícula utilizando as próprias unhas, o que me causa um nojo absoluto e me faz voltar a Mario.
“O matutino campeão de assinaturas foi testemunha do flagelo. Um crítico deveria ter a compaixão de não aparecer na noite do patrocinador, mas aquele não teve. Nenhum tem.”
Mario me faz pensar em mim. A mesa de seis jurados me olhando, a plateia em silêncio, todos assistindo minha apresentação de “Nada Tanto Assim”, do Kid Abelha, no palco.
Só tenho tempo pras manchetes no metrô /
Abri um jornal e escorei o corpo numa cadeira que quase caiu.
E o que acontece nas novelas /
Sentei na cadeira e apertei o botão do controle remoto que levei no bolso.
Alguém me conta no elevador /
Levantei da cadeira e apertei outro botão, imaginário, do elevador.
No refrão: Eu tenho pressa e tanta coisa me interessa mas nada tanto assim/
Corri no lugar quando cantei “eu tenho pressa”. Em “tanta coisa” gesticulei muito com os dedos. “Me interessa”, apontei para o meu cérebro… Uma exaustão. Para mim, para a plateia, para os jurados.
No fim, era notícia boa que ninguém da minha família estava vendo. A música terminou, o silêncio permaneceu. Meia dúzia de educados bateu palmas, pessoas com coração. O primeiro jurado desligou o botão do microfone e cochichou com o outro. Os dois riram. A família da Bianca foi em peso. Bianca tinha se apresentado um pouco antes, dublou “Pintinho Amarelinho”, do Gugu, trajada com uma fantasia idêntica à do passarinho, que a mãe dela costurou. Fingi ter visto alguém no meio da plateia e dei um tchau. As pessoas que estavam na direção dessa pessoa que não existia trocaram olhares, para quem ela está dando tchau? Joguei um beijo. A voz do jurado interrompeu o delírio:
– Bom, eu ia te dar um sete, mas vou dar um seis.
Ele desligou calmamente o microfone e colocou em cima da mesa. Ligou calmamente o microfone em seguida: – Você não merece, mas vou dar uma justificativa. Você não estava nem olhando para esta banca quando eu ia te dar a nota. Seis.
Os outros jurados também deram seis, sem tecer justificativas. Ninguém falou da roupa, meu vestido vermelho idêntico ao da Paula Toller na capa do disco. Foi a Lu que mandou fazer o vestido. No meu sonho. Na real eu fui de calça jeans porque era rock’n’roll, camiseta branca porque eu não tinha uma vermelha, e o cabelo molhado de New Wave.
Mas foi a Lu, realmente, que me deu a dica de cantar “Nada Tanto Assim”, porque a letra era boa para fazer mímicas; eu podia levar um jornal, um controle remoto…
*Mario Cardoso, personagem principal de A Glória e seu Cortejo de Horrores, esse livraço de Fernanda Torres, que, apesar de masculino, me lembrou do feminismo, do feminino e dos meus fracassos.