Alexandre Furcolin: força do vento – silêncio e ruído, sedução e repulsa
Em sua casa-ateliê, numa rua pacata da Vila Mariana, em São Paulo, Alexandre Furcolin cria paralelamente obras em desenho, pintura, fotografia, e mistura tudo em cada uma delas, num jogo sem-fim de relações visuais bastante livres – prática que intercala com leituras de filosofia oriental, meditação e muita flauta (flautas essas fabricadas por ele mesmo, para preencher sua contínua instalação sonora). Isso sem mencionar sua produção fotográfica para a moda, com uma volúpia tão presente quanto não objetificante.
Essa inquietação plástica pode ser notada expressamente em seus nove livros de fotografia, com especial destaque para São Paulo, da Coleção Fashion Eye, publicado pela Fundação Louis Vuitton, cujo lançamento mundial no Festival d’Arles deste ano, no sul da França, denota uma relação amorosa com sua São Paulo e nos guia para um mundo plural, diverso e bastante singular. O livro é uma composição que segue o sopro que corre pela planícies, vales e clubes dessa cidade sem fim e desbrava a megalópole pulsante com o frescor da música do vento, a força da luz do sol e da lua, no compasso entre o estranhamento e o maravilhamento. Da dura e crua cidade, Furcolin extrai o fortuito que escolhe desposar, delineando uma ligação íntima de espanto e afeto.
A energia vital caótica e livre da múltipla produção artística de Alexandre Furcolin convida a ver o mundo com olhos mais concentrados, elegendo um certo campo de visão, focando no essencial. Seus trabalhos trazem a luz do inesperado em cada uma das mídias em que atua. Com traços musicais de improvisação e domínio dos gestos, Furcolin preenche suas telas em linho cru como quem desenha na terra: com gestos firmes em sulcos profundos, aplicando diferentes técnicas e inserindo imagens fotográficas rasgadas e fragmentadas, com total desprendimento pelo suporte. Mas aqui a água do mar ou da chuva não apaga essa escrita, só sugere movimento e fluxo vital em seus negros textos ilegíveis, acompanhados de cores que fazem alusão aos principais elementos da natureza.
Já os desenhos revelam um tipo de composição harmoniosa e inesperada, jocosamente infantil, com traços delicados e ágeis, que não respeitam a imobilidade. Clamam por vida e movimento e até dançam sozinhos, sob nosso olhar, com a fluidez de um desenho às cegas.
Como quem respira (e como quem faz do sopro música, na flauta), Furcolin pinta, desenha e fotografa. Em cada uma dessas mídias, o artista elabora ambiências oníricas que exploram o caos da cidade e a sabedoria da natureza. Numa escrita de garatuja ilegível, explora diversos meios para inscrever um novo alfabeto e, assim, conciliar num mesmo plano ritmos, volumes e cores que pareciam inconciliáveis.
Dessa pulsão por cor, forma e sensação, o artista nos convida a um universo saturado que emana uma busca por estabelecer contato com sutilezas e estranhamentos do mundo. As paisagens são desenho, são traços, mas também enquadramento; os retratos são registros de feixes de luz, portanto desenho também, e as pinturas são partituras cromáticas eloquentes. Assim, as fotografias conectam as demais obras de maneira muito sutil e fina, não só pela reiteração de ambiências, composições e cores, mas também pela confirmação da postura do artista: tanto agente quanto observador.
Desse embate entre complementares, entre noite e dia, fúria e placidez, Furcolin não se contenta com o registro documental do mundo. E se mostra fotógrafo-desenhista, ou pintor-fotógrafo, ou pintor de fotografias musicais — artista múltiplo. Se, para Susan Sontag, “fotografar é em essência um ato de não intervenção”, para Furcolin fotografar é também intervir e criar novos jogos visuais, que vão além das pessoas, além da cidade — não para abarcá-la em sua totalidade, mas para rasgar uma nova conexão com o entorno, a partir da sua intimidade. Ao ser um fotógrafo documental e também intervencionista, Furcolin cria novas realidades, novos jogos poéticos vitais.
Com um trabalho focado no instante, Furcolin cria momentos dilatados, a partir de decisões plásticas firmes, que podem ser continuamente revistas, baseadas em seus critérios de composição, enquadramento, para assim estabelecer jogos de campos justapostos, sincronizando pontos de vista.
Na fotografia, manifesta sua identificação com a distante paisagem estranha, talvez na inversa medida com que explora seu olhar admirado e desejante pela proximidade dos corpos. Nesses jogos de encantamento e repulsa, procura uma abordagem sem julgamentos, expressa por meio de uma contundente inteligência visual, com uma paleta vibrante magnética, flashes que atenuam o alto contraste e que pontuam faces, corpos e naturezas-mortas.
No desenho, brinca jocosamente com pintura e fotografia, alternando papeis — a pintura quer ser desenho, a fotografia quer ser pintura, e o desenho sugere uma junção de todas as anteriores, a partir de traços mínimos, com colagens que convocam as outras técnicas e criam um desenho de muitas vozes e cores. Explorando distintas abordagens da linguagem fotográfica, adequadas a distintas atmosferas e assuntos, e distintas soluções para cada suporte, o artista se vale de múltiplas formas de abordagens para as imagens que cria. E, assim, faz com que sejamos guiados por essa força do vento, que dá forma a silêncio e ruído, sedução e repulsa — como um flautista de Hamelin gauche, que reorganiza o caos para torná-lo ainda mais complexo, numa improvável condensação de geografia e tempo.