Um inventário de saudades
Talvez seja este o trato: não há como permanecer vivo sem sentir falta de algo. Todos nós temos um inventário de saudades que ganha, ao longo da vida, mais elementos. A lista é longa, e os itens crescem conforme andam os ponteiros do relógio.
O filme Aftersun foi motivado pelas saudades que a diretora, Charlotte Wells, sentia do pai. O desejo era contar para o mundo todo que ele havia existido. Ela criou uma cena inesquecível de uma dança sublime, pai e filha numa sintonia única. Ao fundo, toca Queen, this is our last dance, this is our song. E a música combina tanto com a cena, de um jeito tão doce, que a saudade se transforma numa coreografia espontânea bonita que faz lembrar todas as últimas danças de todas as pessoas que assistem. Já não é mais só a violência da saudade, existe também uma ternura.
Sinto saudades de você. Te escrevo um poema, canto uma canção, planto flores no buraco da saudade. Quando você foi embora e se perdeu numa vala de terra, joguei uma coroa de flores lá dentro. Queria que o seu buraco ficasse colorido. Acho que, no fundo, o que eu queria era colorir a última vez em que olhava para você. Por uma coincidência, você me chamava de “flor”. Te dei flores como uma última lembrança e também como um gesto de agradecimento por tudo que você me deu. Hoje eu sinto sua falta, mas o buraco que ficou no meu peito vive agora florido.
Sobre buracos e vazios
Jonathan Safran Foer, no livro Tudo se ilumina, afirma que “o vazio é a regra da vida”. Nossa existência começa em um buraco: é preciso que o espermatozoide fure o óvulo para que se forme o embrião. A origem do mundo começa num buraco do corpo e termina num buraco de terra.
A humanidade caminha junto com a soberania da falta. Para Lacan, é ela que impulsiona o desejo, nosso componente central, onde se estrutura a linguagem. É na ausência da mãe que o bebê aprende a cantar, falar e brincar (por um tempo suportável, é claro). Sem a falta, o sujeito não busca objetos de desejo, não sonha.
Nas palavras de Freud, “é preciso amar para não adoecer”. A incompletude é responsável pelo meu desenvolvimento. Porque não me basto, procuro o outro. Me associo, crio. Podemos pensar que o sentimento mais poderoso do mundo, o amor, é complementar ao mais temido, a ausência. Amo porque não estou completa. Trabalho porque falta dinheiro. Faço amigos para espantar a solidão. Não me basto, por isso crio laços. Produzo porque há algo que preciso comunicar. Se me falta o ar, respiro. Falta é o que dá força ao movimento. É curioso como a palavra está associada sempre ao verbo fazer: faz falta. A falta faz. Faço porque sinto falta.
Sem lacuna, não há espaço, só excesso. Nossa criação depende de espaço e também de lamento. Num movimento constante de completude e euforia, nada seria construído.
Na mitologia grega, a história da criação do universo é bastante ilustrativa: no início tudo estava unido. Céu e terra eram uma única coisa, não havia luz. Terra (Gaia) estava exausta de ser coberta pelo Céu (Urano). Ele se encontrava deitado e estendido sobre ela, num movimento de cópula constante. Não havia luz, apenas noite. Gaia, exausta e sufocada, grávida de uma série de filhos aprisionados — pois não conseguiam sair de seu ventre —, combina com seu filho, o deus do tempo, Crono, de castrar o pai, Urano. Gaia constrói uma foice e entrega na mão de Crono, que corta as partes sexuais do pai. Num grito de dor, Urano se afasta de Gaia e se instala no alto do mundo, de onde não mais sairá. Suas lágrimas tornaram-se as estrelas. Seus filhos, antes aprisionados, saem para a luz, ficando livres entre o tempo e o espaço. O oceano, a terra, as florestas e as montanhas ganham vida. “Como Urano tinha o mesmo tamanho de Gaia, não há um só lote de terra que não encontre lá em cima um pedaço equivalente de céu”, diz Jean Pierre Vernant em O universo, os deuses e os homens.
Sobre sufocamentos, afogamentos e atropelamentos
Fico pensando se o sujeito contemporâneo não se sente tal como Gaia, sem espaço, sufocado. Por informações, imagens, conteúdos. Criamos conteúdo incessantemente, mas o sentimento de esgotamento é uma marca dos tempos atuais, assim como a sensação de esvaziamento. Talvez não seja à toa que o mal contemporâneo seja o burnout, o TDAH e a depressão. Há uma sensação permanente de estarmos consumidos, sobrecarregados, ao mesmo tempo em que falta algo que dê substância.
Talvez essa substância ausente seja exatamente a elaboração de nossas faltas, a assimilação de nossos aprendizados a partir dos lutos, das dores, das perdas e das ausências. Numa cultura de excessos há espaço para a falta? Cabe a dor nesse tempo de pressa e urgência? Se tudo é tão facilmente substituído, o que aprendemos com nossas saudades?
É importante refletir sobre esse pensamento atual, que impõe ao sujeito a lógica do constante pensamento positivo e da superação, ideia que vai na contracorrente do pensamento psicanalítico, que vê a sublimação como o destino ideal da dor. Ela precisa ser transformada; para que uma falta seja elaborada, é preciso tempo. Este é o único capaz de mudar uma falta de prateleira dentro da nossa alma. O tempo transforma a dor. Cronos, essa divindade poderosa, tem muito a nos auxiliar, mas para isso é preciso paciência, uma palavra que está quase em desuso.
Quando Freud fala do desligamento da energia (libido) nos objetos de amor, usa a palavra “paulatinamente”, isto é, aos poucos. Durante o processo de luto, o aparelho psíquico vai gradualmente entendendo que perdeu o objeto de amor. Por um tempo, a dor da perda é o que resta para aquele que perdeu, como se a saudade fosse essa espécie de souvenir deixado pela energia que antes era investida no amado. Aline Bei sintetiza esse sentimento numa frase: “Saudade é amor, e é dos vivos”.
Por isso, penso que a fala “reage, bota um cropped!” tem muito mais a ver com atuação do que com reflexão. Reagir remete ao impulso, trata-se de uma resposta que se assemelha à descarga, e não à cicatrização.
É preciso fazer as pazes com as nossas faltas. Como diz Matilde Campilho, “foi com o tempo que eu fui me acostumando com essa coisa da saudade”.
O correr do calendário traz marcas, faltas, rugas, rastros. No entanto, acredito que o importante é o que fazemos a partir dessas perdas, uma vez que, como escreve Elizabeth Bishop, “todas as coisas contêm em si o acidente de perdê-las”. Sempre estaremos assombrados pelo fantasma da falta. E a arte de perder é algo que vivemos tentando dominar ao longo da vida. Lila, a inesquecível personagem de Elena Ferrante, dizia: “Cada um conta a vida como quer”. A habilidade de ressignificação de nossas faltas é marcada pela nossa subjetividade, pelas nossas ferramentas internas de ressignificação, e não pela prontidão com que reagimos às dores das ausências.
Recorro a versos de Drummond: “Por muito tempo achei que a ausência é falta / E lastimava, ignorante, a falta / Hoje não a lastimo / Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim”. A assimilação de nossas ausências é parte importante da nossa identidade. Freud adiciona: somos constituídos por uma série de lutos, todos os nossos buracos são também quem somos. Nossos avessos revelam nossas necessidades e também novas possibilidades.
É preciso fazer as pazes com a incompletude inerente à condição humana. Sem ela, viveríamos sempre numa condição estéril.
Sem a falta não existiriam poemas. Sem o silencio, não seriam compostas as canções. Sem os buracos, não plantaríamos flores. A vida estaria numa constante paralisação. Volto ao poema de Drummond, quando fala sobre a acomodação da ausência: “E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços / que rio e danço e invento exclamações alegres / porque a ausência, essa ausência assimilada / ninguém a rouba mais de mim.”
É preciso aceitar o convite para a dança da ausência sem medo do buraco que ela deixa. É preciso confiar na nossa capacidade de desabrochar as flores em nossas faltas. This is our last dance, this is our song.
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Deixo aqui meu agradecimento ao meu amor, Daniel Mourão, que digitou este texto num domingo à noite, pois me encontrava incapacitada de fazê-lo após uma intervenção nas mãos. O amor recupera as dores da falta.