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Exu tocou uma música ontem com um som que só inventou hoje: a música negra enquanto tecnologia criadora de mundos e imaginários

por Rafael de Queiroz

Tavia Nyong’o começa seu texto Afro-philo-sonic Fictions: Black Sound Studies after the Millennium (2014) afirmando que “a música há muito tem sido entendida como central para a experiência vivida de pessoas negras”. Seu artigo gira em torno de duas obras recentes que, na sua perspectiva, inauguram uma possível nova área de pesquisa, por ele denominada Estudos do Som Negro, em tradução literal. Relacionados a ela estão os livros de Alexander Weheliye, Phonographies: Grooves in Sonic Afro-Modernity (2005), e de Julian Henriques, Sonic Bodies: Reggae Sound Systems, Performance Techniques, and Ways of Knowing (2011).

 Alguns teóricos negros, de diferentes campos, já vêm trabalhando com a afirmação dessa importância há bastante tempo. Um caso exemplar é o de Paul Gilroy, em seu O Atlântico negro (2001), que teoriza sobre isso colocando a falta de acesso de escravizados ao lugar central da literatura no mundo ocidental, sendo excluídos dos meios de alfabetização, como principal impulsionador da importância do som e da música como meio de expressão e comunicação. Para Steinskog, no livro Afrofuturism and Black Sound Studies: Culture, Technology and Things to Come (2018), a discussão gira em torno de como a música ou o som podem ser considerados também meios de comunicação para além dos meios tradicionais, podendo expandir esse entendimento, e não apenas ficar no dualismo do “ou/ou”. 

Apesar de levantar uma hipótese instigante, Gilroy não aborda o que outros pesquisadores, especialmente na área da musicologia africana e afrodiaspórica, já vinham trazendo com certa anterioridade em relação à música também ser comunicação em diferentes culturas africanas. Primeiramente, devemos lembrar que, em África, apesar de muitas culturas apresentarem sistemas de escrita, a oralidade nunca deixou de ser a principal forma de difusão do conhecimento. Isso, por si só, já seria motivo de defesa da principal hipótese de Gilroy, que versa sobre uma cultura negra transnacional profundamente interconectada. 

A música, entre suas outras prerrogativas, sendo utilizada nas mais diversas atividades, como trabalho, ritos e atividades relacionadas à espiritualidade, entre outras, também era meio de comunicação. Ou mais: a música africana é oralidade, como ilustra a discussão apresentada por Samuel A. Floyd Jr. em The Power of Black Music (1995), trazendo autores como Francis Bebey e Olly Wilson: “Bebey, por exemplo, nos diz que, na música africana, o ‘principal motivo dos instrumentos é reconstituir a linguagem falada’”. Complementando, mais à frente ele afirma: “Wilson sustenta que ‘o repertório pré-existente de padrões de percussão usado por mestres em muitas culturas africanas é baseado em padrões musicais derivados de gêneros selecionados de poesia oral’”.

Essas colocações demonstram, por um lado, a potência da oralidade para as culturas africanas e, por outro, que essa conexão não é casual, porque muitas línguas africanas eram tonais e, assim, os instrumentos de percussão também teriam a função de comunicação, de passar mensagens, ou seja, um media ancestral africano. Sobre esse aspecto, afirma “Salloma” Salomão Silva:

Um maior conhecimento das relações entre a fala e a música no contexto das sociedades africanas certamente ajudariam a iluminar o papel social das musicalidades, certamente recairiam sobre a relação entre os sons dos tambores que imitam a fala, como também dos demais instrumentos musicais e suas possíveis vinculações com a linguagem oral.

Silva cita ainda conhecidos tambores mensageiros, como os “dondom (também chamados de tama), famosos e esquivos tambores falantes, cujos recursos permitem reproduzir as alturas dos sons da fala”, e também defende que “os txinguvos ou chinguvo, tambores-xilofones dos povos tshokwes de Angola, são tanto ‘mensageiros’ quanto tambores convencionais utilizados na vida ordinária e em atividades religiosas”. 

Como demonstram essas citações de Silva, apesar de o caráter oral da cultura africana ser extremamente divulgado, ainda há muito a ser explorado em seus diversos outros aspectos, principalmente na conjunção com línguas tonais e música. No entanto, isso é apenas uma das muitas camadas de significação que poderíamos explorar dentro do binômio música/negritude. Uma que me parece muito sugestiva, nos dando um significado profundo dessa relação, é a discussão sobre cosmopercepção sugerida por Oyèrónkẹ Oyěwùmí. Falando sobre os iorubás, mas também estendendo-se a outros povos africanos, a autora, ao fazer uma distinção entre África e Ocidente na maneira como estes percebem o mundo, coloca que há uma primazia da visão no segundo, enquanto na primeira a audição seria a mais relevante. Isso porque no iorubá, sendo esta uma língua tonal, a audição não poderia ficar em segundo plano; ao mesmo tempo, esse sentido pode focar em diferentes realidades para além do que se pode ver, “não privilegia o mundo físico sobre o metafísico”. Essa reflexão da autora é muito potente e nos ajuda a explicar o poder da música negra e por que a África e suas diásporas articulam-se culturalmente de forma sônica, diferentemente do ocularcentrismo ocidental. Isso move nossas epistemes, não apenas para serem encontradas também nas sonoridades, mas, ao mesmo tempo, para atestar uma ignorância histórica dos europeus em relação a esse fato. 

Segundo Nyong’o, o que une as obras de Weheliye e Henriques é essa descentralização da forma de saber a partir da visualidade/do letramento e o foco no aspecto sonoro das culturas afrodiaspóricas. Mais especificamente, ele cita a frequência grave como catalisadora desse elo comum, pois os dois autores partem da importância que Ralph Ellison deu a essa no seu romance O homem invisível (1952) ― na obra, de forma simbólica, o autor exemplifica como o som é influente na cultura negra, sendo articulado até mesmo na literatura. Assim, segundo Nyong’o, “a tradição radical da comunicação negra nas frequências graves é o que permite a Weheliye e Henriques desafiar o analfabetismo epistêmico ocidental no campo do som negro”.

Rafael Galante, em seu curso sobre a influência de culturas centro-africanas no Brasil, explica como a frequência é importante para a música africana, tendo pormenorizado o grave e sua centralidade como um dos motivos organizadores dessas sonoridades. Dependendo do nível em que é tocada, essa frequência pode nem ser escutada pelo ouvido humano, mas será sentida pelo nosso corpo, ou seja, ela teria o poder de colocar o nosso corpo em movimento. Ao ressoar em nossos corpos, o grave apresenta essa qualidade extrassensorial, fazendo com que o sintamos quase uma materialização do som, deslocando-o “apenas” da dimensão auditiva para a tátil. Isso também implicaria uma ressignificação do lugar da música ocidental como da ordem do ouvido “pensante”, da contemplação. Essa qualidade corrobora ainda a fala de Oyěwùmí sobre a expansão dos sentidos também atingir metafisicamente o que não pode ser visto. 

O grave vai interferir corporalmente em nós, mesmo que não o queiramos, colocando até mesmo os brancos para dançar, uma coisa “diabólica”, como descreveram tantos relatos colonizadores. Tal frequência está participando ativamente de processos sociais e é uma tecnologia africana que é utilizada em diferentes instâncias. Poderíamos exemplificar isso com a maneira como ela é aplicada no contexto da espiritualidade e da medicina, já que a frequência grave é capaz de induzir ao transe, que é um fator de cura e comunicação com a ancestralidade. Essa materialidade sonora abre espaço para um entendimento de mundo por meio do som e da música, assim como para a percepção de uma episteme acústica. Esse vocabulário sonoro é levado a outros patamares; quando a serviço do imaginário, abre possibilidades de se pensar uma cosmopercepção sônica e relacioná-la aos seus usos dentro de uma política-estética afro, reafirmando o locus imprescindível da música em sociedades negras. 

Outra forma de abordar a prevalência da música/do som para as culturas negras, além da sua inexorável presença na experiência vivida, seria enxergá-la enquanto poder de arquivo. Como estamos falando de culturas primordialmente oralizadas, podemos dizer que a música foi/é uma tecnologia mnemônica de transmissão de histórias, saberes e memórias desde os tempos mais remotos. Isso indica uma tradição africana que, de tão arraigada, apresenta uma continuidade, em que tradição e passado são instâncias valorizadas, assim como a mudança. Afinal, segundo Chinua Achebe, “(…) devemos falar da tradição não como uma necessidade absoluta e inalterável, mas como metade de uma dialética em evolução ― sendo a outra parte o imperativo da mudança”. Então, a tradição enquanto forma dialética não pressupõe o inalterável, o estanque.

Esse pensamento nos leva diretamente ao conceito de changing same de Amiri Baraka, no ensaio The Changing Same (R&B and the New Black Music), presente no seu livro Black Music (1966), publicado quando ele ainda assinava como LeRoi Jones. Uma tradução literal seria arriscada, mas está na linha de “o mesmo/a mesmice em mudança”, e, ao falar do contexto da música afro-americana, o blues seria o gênero que deu origem a todos os outros. Nesse processo, há uma entidade chamada “impulso blues” (blues impulse) que permitiu essa transmissão e transformação no tempo-espaço da música negra, e que, na verdade, é reconhecidamente um “impulso africano”, já que sua origem remonta ao passado no continente africano e serve como forma contínua da ligação entre os povos deste, sua comunicação, sua forma de transmissão de saberes, sua mídia de armazenamento de histórias e memórias.

O changing same apresenta uma ideia de núcleo, porém um núcleo dinâmico, que está em constante mudança, e levanta questões sobre a relação entre diferença e repetição e entre continuidade e mudança. Ele traz em seu bojo tanto o presente como o passado e o futuro, numa relação cíclica. Baraka exemplifica com uma qualidade mais do que citada em estudos da música negra o chamado e resposta, característica presente em todos os gêneros da música negra estadunidense e que veio do passado africano. Isso reforça a qualidade de arquivo da música negra. Não por acaso, o chamado e resposta pode ser identificado em inúmeros gêneros musicais da afrodiáspora, como no samba, no coco, na sambada de maracatu, na ciranda, entre outros, confirmando esse aspecto formador africano. 

Pensando em música e no som como arquivo, a importância da oralidade e mesmo a cosmopercepção centrada na audição, chegaríamos à conclusão de que o gramofone não foi a primeira mídia a armazenar o som, e sim o corpo negro, devido à importância que se deu ao ato sonoro, como colocou Weheliye. Afinal, o som também foi arquivado na transmissão dentro de uma comunidade, arricando-se dizer que o som tem papel crucial na formação de uma comunidade: “(…) mas nesse contexto, e de uma forma ainda mais importante, é como a comunidade, enquanto um coletivo, consegue armazenar e reproduzir seus sons, o que é, ao mesmo tempo, sua memória e sua história”, afirma Steinskog.

O que, dentre várias outras coisas, o changing same de Amiri Baraka ajuda a corroborar é o foco na oralidade como forma de transmissão e de registro de toda uma cultura que foi tida como primitiva e atrasada, sem história, por não estar calcada em formas escritas. O conceito também explica o poder da música e do som dentro da cultura negra e atesta a falha do colonialismo e da supremacia branca em seu projeto de aniquilação e inferiorização de culturas de matriz africana. Baraka fala de como memória e história foram transmitidos a partir da música e da dança, destaca o “propósito religioso e/ou ritual” e como o culto aos espíritos esteve sempre na raiz da arte negra. 

Ao falarmos de tecnologias sônicas negras, abriríamos espaço para discutirmos uma infinidade de exemplos, como a invenção do surdo de Mestre Marçal e sua mudança de curso no samba, passando pelo trio sanfona, zabumba e triângulo de Luiz Gonzaga até os efeitos que o uso diferente da eletrificação na música de Jimi Hendrix, de Herbie Hancock e de Miles Davis ajudaram a construir mundos e imaginários a partir do som. Na verdade, a música e a manipulação sonora são uma tecnologia per se, como estamos tentando construir, e fazem parte de uma episteme, de uma cosmopercepção e de valores civilizatórios africanos. 

Isso está presente no conceito de afro-technological, de Salim Washington, em que música e tecnologia estão sendo discutidas, dentro da cultura negra, através de sua representação em livros de ficção científica de Henry Dumas e Samuel Delany. Para o autor, as invenções de instrumentos de sopro quando os percussivos foram proibidos nos Estados Unidos, ou a invenção da guitarra amplificada de Charlie Christian, ou as steel drums do Caribe, criadas a partir de latas descartadas, ou a gênese da bateria como a conhecemos hoje por músicos de jazz de Nova Orleans são exemplos de desenvolvimento tecnológico na música popular realizado por pessoas negras. Também se configuram como tais as criações de técnicas vocais e estilos de tocar os mais variados instrumentos, assim como o uso criativo que DJs de rap deram ao toca-discos para fazer música. A criatividade e a inventividade estão presentes em seu conceito de forma mais preponderante do que o uso em si das “máquinas”, do objeto fruto de tecnologia. Na verdade, o que o interessa mais é o fazer musical em si e como este foi utilizado como tecnologia pelas comunidades negras, agindo nas psiquês dos executores e ouvintes, assim como no mundo físico e espiritual. 

Washington também chama o afrotecnológico de impulso e lida com questões de música como meio de transporte, com seu poder de mudar o ambiente e com ser uma “tecnologia capaz de criar e curar, assim como vingar e destruir” usada de fato ou simbolicamente pelos artistas. Essa ideia me leva diretamente ao postulado de Fela Kuti de que a música é uma arma do futuro e que nós, negros, já sabíamos disso e sempre a utilizamos como tecnologia em diferentes aplicações, até no criar fabulações sônicas para expansão de sentidos e significados e a consequente criação de mundos e imaginários. 


— Este texto foi adaptado do e-book Cronopolíticas afrossônicas: ecos do afrofuturismo na música pernambucana (2023)