Aquilombamentos artísticos na diáspora brasileira
Retornar ao passado para ressignificar o presente com futuros possíveis, assim nos diz o ideograma Sankofa, oriundo dos povos Akan, o qual sabiamente se tornou uma ética que versa a recuperação da ancestralidade e do protagonismos pelas quais Abdias Nascimento apresenta em suas obras. Artista, pensador, filósofo, político e uma série de outras pluralidades que transbordaram na busca incessante da libertação e da liberdade de si e do seu povo, através da visão africana que foi deflagrada pela colonização.
A transmissão de valores e tradições da história cultural africana e diaspóricas são o fio condutor das produções de Abdias Nascimento, centradas nas raízes africanas, em especial, a cultura Ioruba, na qual os Orixás são as bases de referências pictóricas, reflexão direta e experiencial – estética de si como homem, no sentido mais humano da palavra, e como continuidade africana. O legado deixado por Abdias nos convoca a um devir coletivo de rompimento da brancura imposta nas produções artísticas contemporâneas que renegam a erudição, o caráter plástico e de comunicação que essas referências transbordam para além do lugar de uma única universalidade.
A partir dos caminhos abertos por Abdias e Beatriz Nascimento, o conceito de quilombo torna-se uma prática para a manutenção existencial enquanto povo e como proposta para autoafirmação e sistema alternativo para correção de diferenças para além de um lugar utópico e distante. Num contexto racial artístico embebido de tantas limitações e amarras coloniais, defender um revisionismo de diferenças e defender o direito de pertença aos vários níveis de saber, decisão e criação nos campos das artes, tornam-se fundamentais e urgentes.
Nos últimos anos, vemos um determinado aumento de artistas, pretos e pretas, compondo exposições e espaços mercadológicos da arte. Muito desse movimento é oriundo de proposições construídas pelos movimentos raciais e sociais do século passado que abriram caminhos nas políticas públicas de inserção racial e cultural em várias ramificações da sociedade.
Dentro dessa perspectiva e desse posicionamento político, o meu vir a ser existencial coloca-se páreo ao axioma profissional nas quais meu lugar hoje, de atuação, versa. Propor uma equidade artístico-visual dentro dos projetos curatoriais de que faço parte – a partir das duas últimas exposições do Museu de Arte do Rio: Crônicas Cariocas, em 2021, e Um defeito de cor, em 2022, onde componho a equipe curatorial que contou com percentual majoritariamente de pesquisadores e curadores pretos, liderados pelo curador – chefe Marcelo Campos – é essencial para que nossas histórias sejam contadas, pesquisadas e protagonizadas a partir de novas perspectivas.
Em Um defeito de cor, exposição homônima ao livro da autora Ana Maria Gonçalves, que também foi uma das curadoras da mostra. É válido apresentar que foi um projeto que contou com mais de 95% de obras expostas de pessoas pretas, em especial mulheres negras, que historicamente são apagadas da história da arte brasileira. Tendo também um marco, atrasado por sinal, de obras comissionadas e produzidas por mulheres negras transgêneros dentro do espaço museal.
Voltando a Abdias Nascimento, que nos últimos quatro anos tem figurado com suas obras, tardiamente, instituições tradicionais de arte como Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC – Niterói), Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio), Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) e Instituto Inhotim (MG), em exposições individuais e com determinada visibilidade social e artística em exposições que contam, em sua maioria, com a curadoria ou a composição curatorial de profissionais pretos que fazem parte dessas instituições, como a diretora artística do MAM-Rio Keyna Eleison; Amanda Carneiro, curadora assistente do MASP; Deri Andrade, curador assistente no Instituto Inhotim.
Vale salientar a construção histórica e de imensa relevância do acervo do
Museu de Arte Negra, hoje sob tutela do Ipeafro, ambos criados por Abdias Nascimento e sua visão curatorial que se opõe ao conceito cunhado pelo ocidente. Trata de coletivizar e resgatar a memória visual e artística do legado afro-brasileiro, dentro das várias possibilidades de criação. A curadoria de Abdias não propõe uma separação, uma escolha, na ideia superficial do que poderia ser ou não ser arte.
O Museu de Arte Negra teve sua primeira e única exposição no Museu da Imagem e do Som, curada por Abdias em 1968, data que marcou os 80 anos da abolição da escravatura e também seu exílio de treze anos dentro do contexto da ditadura militar. É interessante também observar que essa data marca o início da sua produção pictórica que se transformou em mais um pilar de conexão com sua ancestralidade e suas raízes afro-brasileiras.
Aquilombar e trazer novas possibilidades e espaços a pessoas pretas são as premissas que mantêm a minha humanidade vívida, nítida e presente.
Telas, performances, curadorias, pesquisas, ações, objetos, visualidades de corpos e corpas, nascidos em gerações diversas, comungam e bailam sob o arcabouço construído pelas mãos e voz desse Griot, chamado Abdias Nascimento, que, mesmo dentro das contradições e dualidades de si, demarcou África como berço civilizatório e como o lugar a ser centrado e revisitado.
Afinal, como diz a filósofa Katiúscia Ribeiro, “O futuro é ancestral.”