A Noite das Estrelas está, esteve e sempre estará aqui
Fotos: Arquivos do Conexão G, cedido ao Entidade Maré.
Era festa junina, e um homem no microfone anunciava repetidamente que às 23h começaria o show gay, a Noite das Estrelas. A rua estava lotada, estávamos mais pra trás da multidão. Perguntei à minha tia Dila o que era show gay, ao que ela me respondeu que se tratava de um show de “viado”, de “homem que gosta de homem”. Ela foi à loucura quando Erika Ravache subiu no palco. Na performance, ela se movia e dublava a música agitando a plateia, de idades, gêneros e raças distintas. Essas imagens tecidas pela presença do espetáculo, dos gestos estabelecidos na performance, abrem um novo universo testemunhado pelos meus olhos, escrevendo a Noite das Estrelas na minha pele, numa operacionalização limítrofe ao que Beatriz Nascimento, no filme Orí, se refere quando diz que “é preciso a imagem para poder recuperar a identidade. Tem que se tornar visível”.
A Maré é um bairro da zona norte do Rio de Janeiro, composto por dezesseis favelas. Uma terra negra, boca em que se faz o mundo de uma constelação de milhões de vozes da Noite das Estrelas, e o universo dessas e de múltiplas encruzilhadas. É assim que ela permanece infinita, como fluxo do impossível, de vidas insujeitas.
Quando a pandemia de covid-19 se tornou a coabitação dos dias, fui passar um tempo na casa da minha irmã. Lá, traçamos uma nova rota para escapar da terrível realidade daquele tempo. Passamos dias conversando sobre como a morte era um desenho arquitetado nas conspirações coloniais e contemporâneas para as corpas LGBTQIA+ negras faveladas. Em um país onde é latente o racismo e a LGBTQIA+fobia e as políticas públicas para a cultura ainda não são estruturadas, as rasuras das nossas existências nas pesquisas, nos censos, em escritos e documentos da memória de construção e formação da Maré são apenas soma e materialidade do pacto social que nos mata. As não audiências não são frutos do acaso: é o traço fundador da colonização, que persiste no contemporâneo, comprometida em nos desmaterializar. Fugimos em bonde, uma multidão que corria conosco como um arrastão, “(…) pois construir uma fuga não significa ser posto para correr. Pelo contrário, é fazer o real escapar, operar nele variações sem fim para contornar qualquer tentativa de captura”, como bem defende Dénètem Touam Bona.
Essa ideia de escapar está constituída em nossas veias, pois a fuga é o que permite a projeção de novos quilombos, a semeadura de outros mundos. É assim que o projeto continua produzindo suas obras, que, consequentemente, vão agregando narrativas, composições e registros e alguns segredos que envolvem os processos que atravessam essa escrita. Foi assim, contando com colaboradores, que se criou o Entidade Maré, em 2020, projeto de pesquisa, comunicação e produção artística de narrativas, arquivos e memórias LGBTQIA+ da Maré. Lembro que, quando criamos o projeto, um dos consultores que colaboraram com sua estruturação, Rodrigo Reduzindo, nos disse: “Vocês precisam ser canais desta história, registrar que ela está viva. A covid tá levando os nossos mais velhos, não podemos nos tornar órfãos dessa memória”. A criação desse projeto é o que permitiu a estruturação, a expansão e o desenvolvimento da pesquisa de dados, imagens informações e narrativas LGBTQIA+ da Maré.
O Entidade Maré produziu, com o material levantado na pesquisa, sete produções artísticas, sendo elas: o curta Entidade, de 2020; o Experimento 10 anos de Parada da Maré: uma declaração de amor ao LGBTQIA+ da Maré, de 2020, o filme performático Noite das Panteras, de 2021; o documentário Antes da Noite, de 2021; o álbum visual documental performático Noite das Estrelas, de 2021; o curta-metragem Meu Universo Corpa, de 2023; e atualmente estamos vivendo o impossível sonho da Ocupação Noite das Estrelas.
Nesse mote da insistência, de não lidar com a realidade a partir de um aprisionamento, vozes, fotos e vídeos coletados são brechas para espiar e sonhar novas possibilidades artísticas, estéticas, arquitetônicas, metodológicas e estilísticas de se produzir. Os antigos shows da Noite das Estrelas estavam rasgados desse mote, à parte dessas específicas articulações da arte habitar o conjunto do cotidiano. Realidade e fazer artístico assentam a encruzilhada como episteme das articulações entre vozes e pensamentos para afirmar que a Noite das Estrelas está aqui, também como uma iluminação dessa imaginação radical, semelhante ao que Jota Mombaça fala sobre o estilhaçamento, ou melhor, o movimento do estilhaço, pois suas vidas são movimentos que estilhaçam espaços irrespiráveis, nos quais a quebra junta uma na outra:
(…) afinal, é um modo de estar juntas na quebra e de encontrar, entre os cacos de uma vidraça estilhaçada, um liame impossível. Tem a ver com habitar espaços irrespiráveis, avançar sobre caminhos instáveis e estar a sós com o desconforto de existir em bando, o desconforto de, uma vez juntas, tocarmos a quebra uma das outras.
No início do artigo Discursos racializados e epistemologia étnicas, Gloria Ladson-Billings apresenta duas perspectivas epistemológicas. Nessa relação, ela ilustra as visões posicionadas a partir de seus princípios estruturantes. A visão, que aborda uma noção de conhecimento a partir das relações africanas, a construção de conhecimento e a existência são constituídas na relação com o outro, “(…) onde o ditado africano ‘Ubuntu’, traduzido para ‘existo porque nós existimos’, afirma que a existência (e o conhecimento) do indivíduo é dependente das relações com os outros”.
Esse lugar ético, em que olhar pros outros é um dos fatores e elemento designante (e fundante) das irmandades alimentadas pelo ubuntu, só é possível a partir de uma percepção de mundo na qual o outro te afeta. O fator diferença é reconhecido através da relação de inclusão do outro. Uma inclusão que não está atrelada a retornos ou ganhos de uma relação, mas articulada pela percepção social de indivíduo enquanto elemento transparente de uma dinâmica social, que não está encerrada em si ou numa visão de mundo constitutiva da solidão.As corpas encontram, nas expressões culturais da Maré, os buracos para atravessarem as paredes das casas e estabelecerem seus gestos, closes e dublagens nas ruas e becos da Maré. Existir como LGBTQIA+ nesse território é rebeldia descarada. Esse legado torna a Noite das Estrelas uma explosão de amor, que estilhaça e debocha da normatividade. É um parar o tempo fruto do movimento feito por muitas mãos ― mãos carnais e invisíveis. Na tessitura habitada no dia a dia, nos sonhos, nas estrelas e no fazer junto, estão vivas as fugas que ubuntu possibilita serem feitas. Nos movimentos de irmãs há uma magia negra que nos abriga nos planos e nas fugas, e a pretitude não para de amar pra renascer. Por isso não se pode resgatar essa memória: porque ela não pode resgatar o que está vivo.
Um agradecimento especial a Marcela Soares, a Pantera, e a Érika Ravache, a Madame, que contribuíram com seus depoimentos para a produção desse texto. Moradora do Morro do Timbau, Marcela é travesti e se considera parda. Era uma das cabeças dos shows e dona do acervo das roupas que eram utilizadas pelas artistas. Érika Ravache é travesti negra que reside atualmente na Itália, artista dos antigos shows das décadas de 80 e 90. Cedeu entrevista para o Entidade Maré na construção do curta-metragem Noite das Estrelas.