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Que terreiro é esse?

por Márcio Bulk

Fotos de Juliana Rocha e Bruno Machado

A primeira vez que vi Pena Branca e Xavantinho foi em um programa da TV Cultura, o Bem Brasil, no início dos anos 90. Eu devia estar com uns 23, 24 anos. Não fazia ideia de quem se tratava, mas fiquei, no mesmo instante, hipnotizado pela imagem daqueles dois negros, de branco, apresentando um repertório quase desconhecido para mim, mas que me remetia a um mundo absurdamente amoroso e acre, tomado pelos grandes sertões.

Anos se passaram e, enquanto escrevia as letras de Tramundo, espetáculo inspirado na obra de Guimarães Rosa, tive a oportunidade de entrar em contato com o álbum de estreia da dupla, Velha Morada (WEA, 1981). Um trabalho formidável, carregado de um sincretismo capaz de unir o cancioneiro caipira à religiosidade afro-brasileira. “Que terreiro é esse?”, décima faixa do álbum, composição do próprio Xavantinho, acabou se tornando uma espécie de guia afetivo para a minha pesquisa, uma toada que trazia em si “feitiço e pagode”.

Inexplicavelmente, quando me encontrei com Rogério, Juliana e Bruno para discutirmos sobre este ensaio, deixei de lado essa referência, focando mais no universo roseano e em alguns temas que o espetáculo aborda, como ancestralidade, intolerância e desculturação. Lembro também de ter levado uma fala de Rosa: “O sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente. Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão”. Paralelamente a essas discussões, reafirmei que tanto eu quanto todos os integrantes do projeto — músicos, arranjadores etc. — aceitaríamos de bom grado sermos seus cavalos, incorporando, por inteiro, as ideias desenvolvidas pelo trio.

Apesar de estar presente em boa parte desse processo, apenas ao receber as primeiras fotos é que notei o quanto estas imagens dialogavam com o universo de Pena Branca e Xavantinho: um sertão impregnado de fé, onde se podia esbarrar com ciganos; egunguns; indianos da Linha do Oriente; Virgem Maria Deodorina da Fé e seu oratório; Antônio Conselheiro paramentado com os cornos de Iansã; Maria Bonita enlaçada à cabaça das Iá Mi Oxorongá; D. Sebastião, o Adormecido, nas mãos de Ikú, a morte; olhos de Santa Luzia estampando o vestido da Yabá. Negros, brancos e mestiços formando uma (en) cruza que, longe de qualquer coesão, assumem e revelam os conflitos e assombros de um sertão quimérico. Ou, como bem entoava a dupla de pretos velhos, um sertão onde “o céu mistura com a terra/ E o mundo se acaba em guerra/ E a viola não sai dos meus braços”.


Originalmente publicado na edição Terra

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