A mente envelhece?
Hoje já existem alguns autores, médicos psiquiatras pesquisadores, que propõem que deixemos de lado o termo “mente”, que pode induzir a equívocos, e passemos a utilizar somente o termo “cérebro”. É razoável se o viés for estritamente médico. Afinal, a medicina se ocupa do organismo, de seu funcionamento e suas alterações, e dedica-se a propostas de como agir para que consigamos restaurar ou melhorar as condições das estruturas que estejam prejudicando o seu funcionamento. As alterações são perceptíveis nos sintomas e nas queixas e são comprovadas e registradas através dos exames laboratoriais e de imagem, que adquirem precisões tecnológicas admiráveis.
A psicanálise, criada por Sigmund Freud, que foi neurologista em Viena no início do século XX, considera que muitos dos problemas e sofrimentos humanos vêm do fato de termos uma mente ou vida mental ou psíquica. A vida do espírito. Isso nos aproxima das constatações e formulações de filósofos, poetas, literatos, artistas e mesmo de religiosos de que a condição humana nos tira da natureza. Nossa vida não é comandada por leis naturais, não estamos submetidos aos instintos que garantem tão perfeitamente a vida dos animais, mas temos uma vida mental. Nossas questões se dão nesse plano, que costumamos chamar de simbólico, que é o da cultura. Da fantasia, da imaginação, mas também dos valores, das proibições, das regras. Da vivência cotidiana de conflitos — conflito e angústia integram o nosso funcionamento.
Nascemos frágeis e desamparados. Precisamos de cuidado e precisamos evoluir, amadurecer. Uns têm sorte, encontram isso em casa, com os pais; outros, mais tarde, podem ter a sorte de encontrar um bom psicanalista.
Cada um de nós tem o desafio e a possibilidade de evoluir, aprender, adquirir sabedoria ou jogo de cintura. A vida humana não é fácil. Precisamos de outras pessoas, nos envolvermos com elas, nos relacionarmos. Precisamos ser recebidos com muito amor, nos desvencilhar de pais e cuidadores, acharmos cada um o próprio caminho. E se permitir ousar, arriscar, inovar, inventar, numa busca que é de autonomia e liberdade. Porém, vivendo em grupo, em sociedade, temos que nos tornar também responsáveis. Emancipar pessoas não é corrompê-las!
Essa trajetória já evidencia o quanto de dificuldades podemos encontrar — e também o quanto de sorte precisamos para toparmos com condições que nos favoreçam e não obstaculizem esse desabrochar e essa busca.
Tomo a citação de Sêneca, do ano 62 d.C.: “somos, no mais das vezes, mais vítimas do nosso terror do que dos perigos reais, e sofremos mais com a ideia que fazemos das coisas do que com as próprias coisas”.
Nossa imaginação, que pode ser muito criativa, fértil, se estivermos com medo, vai preencher nossa mente com conjecturas e hipóteses apavorantes, que vão nos inibir, nos conter, nos reprimir.Um poeta grego que viveu em Alexandria, contemporâneo de Fernando Pessoa, Konstantínos Kavafis, escreveu, no poema Ítaca:
“Quando, de volta, viajares para Ítaca,
roga que tua rota seja longa,
repleta de peripécias, repleta de conhecimentos.
Aos Lestrigões, aos Ciclopes,
ao colérico Poseidon, não temas:
tais prodígios jamais encontrarás em teu roteiro,
se mantiveres altivo o pensamento e seleta
a emoção que tocar teu alento e teu corpo.
Nem Lestrigões, nem Ciclopes,
nem o áspero Poseidon encontrarás,
se não tiveres imbuído em teu espírito,
se teu espírito não os suscitar diante de ti.
Roga que tua rota seja longa,
que, múltiplas se sucedam as manhãs de verão.
Com que euforia, com que júbilo extremo
entrarás, pela primeira vez, num porto ignoto!
Faze escala nos empórios fenícios
para arrematar mercadorias belas:
madrepérolas e corais, âmbares e ébanos
e voluptuosas essências aromáticas, várias,
tantas essências, tantos arômatas, quantos puderes achar.
Detém-te nas cidades do Egito — nas muitas cidades —
para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos.
Todo o tempo em teu íntimo Ítaca estará presente.
Tua sina te assina esse destino,
mas não busques apressar tua viagem.
É bom que ela tenha uma crônica longa, duradoura,
que aportes velho, finalmente, à ilha,
rico do muito que ganhaste no decurso do caminho,
sem esperares, de Ítaca, riquezas.
Ítaca te deu essa beleza de viagem.
Sem ela não a terias empreendido.
Nada mais precisa dar-te.
Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
bem compreenderás o sentido das Ítacas.”
Sofremos, portanto, em grande parte, com ideias e suposições. E ficamos com medo. Podemos, porém, mobilizar coragem dentro de nós. Para envelhecer é preciso coragem; sabemos que tudo acabará mal. Sabemos, aparentemente, de maneira distinta aos animais, que vamos morrer.
Tudo é transitório. Há começo, meio e fim. Entretanto, enquanto o fim não ocorre, temos o que está à nossa disposição. Vamos perdendo coisas materiais, físicas, e pessoas queridas, mas sempre haverá algo que nos interessará. Somos desejantes, animais desejantes, como Lacan, um psicanalista importante, afirmou, mas podemos ficar fortemente inibidos nessa capacidade e possibilidade de liberarmos e autorizarmos nosso desejo.
Fatores de diversas ordens podem nos obstaculizar e nos precipitar numa depressão, num estado de melancholia. Nada mais interessa na vida. Os valores recebidos, a moral, a religião podem nos afastar de nossas buscas por nossos interesses, interditando-os. É necessária e vital, nesse jogo, a transgressão, a liberdade para ousar e experimentar. Idosos não namoram? Não transam?
Penso que nada é mais interessante para pessoas do que outras pessoas. Relacionamentos, relações amorosas, mesmo que não possam mais ser sexuais, nos alimentam, nos fazem sonhar, nos dão vida.
O tempo todo queremos respostas, soluções, alívios. E o mundo contemporâneo, altamente tecnologizado e medicalizado, parece prometê-las.
O que gostaria de trazer para reflexão aqui é a necessidade de se conseguir e manter, mesmo na velhice, o espaço interno, mental, da imaginação, da fantasia, da curiosidade, além da possibilidade de se conviver com o desconhecido, o mistério, o sem explicação. Fazer isso sem anteciparmos as catástrofes, uma vez que há uma dimensão trágica nessa vida, a de ter começo, meio e fim. Abrindo espaço para o desejo e a imaginação, porém, aproveitamos o precioso tempo disponível.
Capacidade amorosa, perceber a existência do outro separado de nós, necessitado de cuidado e atenção, é algo a ser cultivado.
Começamos gostando de nós mesmos, mas vamos nos voltando para os outros, percebendo-os como distintos de nós. Se os perdemos, é doloroso efetuar essa separação. É a tristeza do luto. Parece que voltamos temporariamente essa energia ou libido, como nós psicanalistas chamamos, de novo para nós, mas é possível que ela se disponibilize para novos vínculos. O luto acaba, e então ficamos disponíveis para novos envolvimentos.
Também se pode desenvolver uma tolerância à frustração. Aprender desde cedo que nada é como gostaríamos que fosse nos habilita a enfrentar a vida como ela é. Nos angustiamos, tememos, mas isso não precisa ser um fator de antecipação de catástrofes e precipitar ações inadequadas.
Nos envolvemos com outras pessoas, mas também com ideias, com sonhos.
A vida psíquica ou mental se alimenta, por exemplo, com arte, música, literatura. O cinema é fantástico também. São alimentos para a alma. Uma instituição ou espaços para encontros e trocas devem ser pensados, organizados, mantidos e disponibilizados para diferentes grupos humanos.
Penso que mesmo perdas relacionadas ao funcionamento cerebral propriamente dito, como nas demências e doenças cerebrais, avaliadas e tratadas pelos médicos como condições trágicas, podem ser suportadas por alguém que aprendeu a tolerar as perdas num exercício que nos é exigido muito cedo, logo de saída.
Antecipar e se entregar a restrições me parece catastrófico e algo a ser evitado com coragem e esforço. E se pode ter ajuda nessa empreitada. É o que a análise pode fazer por alguém, através de um vínculo que responde a uma necessidade de amor e a torna consciente para ser buscada e vivida, ao invés de se sair correndo desse mundo, se matando ou se drogando, ou ficar revoltado com nosso trágico destino, o da transitoriedade. Temos princípio e fim; temos o tempo. Toda criatividade e atividade, toda ideia de progresso se relaciona com o tempo. Se não houvesse nascimento e morte, princípio e fim, tudo estaria estagnado. Haveria o desinteressante absoluto, no dizer de Thomas Mann em Louvor à transitoriedade.
A vida não está desvalorizada pela passagem do tempo e pela eminência de seu fim. Pelo contrário: ela ganha valor. Mas precisamos atentar para isso. Nós temos consciência dessa transitoriedade, que pode nos animar ao invés de apavorar ou entristecer. É o que nos lembra Drummond em Mãos dadas, publicado em Sentimento do mundo:
“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.”
Este texto foi originalmente apresentado em formato de fala com o título A (a)ventura da envelhescência: a mente envelhece?