Imagens: Divulgação/Vitrine Filmes
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Virar Mar: o gênesis e o apocalipse como rios afluentes

Nos pântanos de Dithmarschen, na Alemanha, o aumento do nível das águas passa a afetar ainda mais a vida diária das pessoas. Já no sertão brasileiro, o sofrimento se faz presente com secas cada vez maiores e mais duradouras. Ambas as situações, apesar de soarem como diametralmente opostas, são na verdade respostas ambientais, cada qual à sua maneira, a uma mesma circunstância: as mudanças climáticas. Dessas duas extremidades da ferradura, temos a dualidade entre a secura e a profusão, os brasis e as alemanhas, o fluido e o rijo, o físico e o metafísico, o Gênesis e o Apocalipse. Jogando fumaça sobre todas essas bordas, vendando os nossos olhos e permitindo que enxerguemos o que não veríamos com as lentes dos óculos, temos o filme Virar Mar / Meer Werden, do brasilleiro Danilo Carvalho e do alemão Philipp Hartmann. 

Há quem defina como documentário, há quem defina como uma travessia entre a ficção e o documental. No entanto, considerando o quimerismo genético da produção, para abarcar tanto a vertente vérité quanto a vertente onírica, talvez o melhor seja dizer que se trata de uma espinha dorsal documental com filmes dentro de si que muito bebem do imaginário — à semelhança do que faz o cineasta Joshua Oppenheimer, um dos grandes documentaristas da atualidade, em obras como O ato de matar (The act of killing). Ao transitar sem demarcações claras pela pequena cidade alemã que lida com a abundância líquida e o vilarejo cearense que sofre com a sequidão, os realizadores inserem nos vãos dessas realidades brutais algumas seções devaneantes que aumentam o clima de urgência e de fim dos tempos perdurante pela 1h20 de filme, contribuindo para que os recados ambientalistas sejam dados. 

Exemplo evidente disso é a aparição de Jesus — diante do próprio Philipp Hartmann, fazendo aqui as vezes de um técnico de som —, que, no lugar de caminhar sobre a água, afunda humanamente até a cintura. Em resposta a Hartmann, que questiona a sua potestade, Cristo arrebata: “Com tanta poluição causada pelo homem, meu filho, nem mesmo o poder de meu pai consegue fazer com que eu caminhe sobre as águas.”

Nas duas beiradas, conhecemos personagens entregues a uma certa rebeldia, recusando-se a procederem da maneira como dizem que devem proceder. Em Dithmarschen, enquanto deixa de fundo o noticiário que ressoa com um sobressalto que não lhe pertence, um homem segue morando em sua casa de maneira olímpica, mesmo depois de ter recebido a ordem de evacuação. A resistência no Brasil se dá pelas vias da indignação, por pessoas que preferem lutar em prol do açude que salvará suas vidas ao invés de se entregarem à sede, fazendo de tudo para chegarem em quem pode fazer com que a construção aconteça. É assim que as geografias se cruzam não só para lançar bilhetes sobre o estado alarmante do meio ambiente, mas também sobre o corpo social, igualmente afetado e na bica de entrar em colapso: enquanto uns se enchem de água e de solidão, outros se veem esvaziados e forçados a agir.

Os símbolos religiosos são evocados com frequência, mesmo quando não de maneira literal, como é o caso do empoçado Jesus Cristo ou então como a apresentação de uma missa que mostra aos devotos presentes uma animação precária do Jardim do Éden. Amalgamados na beleza e na crueldade da água, as divindades se manifestam nos movimentos incessantes da tormenta, no apoucamento do semiárido, no bater de asas do foguete-garrafa, no tombamento da cachoeira, na calmaria seca sobre a qual o barco descansa. De todos os elementos que constituem o planeta — e constitui nós, seres humanos —, a água é decerto o mais basilar. Não seria um exagero, portanto, como nos mostram Danilo Carvalho e Philipp Hartmann, dizer que a água é a religiosidade mais substancial com a qual podemos ter contato. 

E assistir a este cogitativo Virar Mar / Meer Werden é como ficar de frente para um altar.

Em face de tanta grandiosidade, seja ela raivosa ou misericordiosa, anjos e deuses parecem indecisos: estamos no começo ou estamos no final? Qualquer que seja a resposta, cedo ou tarde viraremos mar. 

Amém.