livro romance, 2009 – nazareno
#18RomanceEditorial

Editora convidada: Helena Cunha di Ciero

Quinta é meu dia favorito. Aqui, nos Jardins, o trânsito pára. As ruas do meu bairro ficam entupidas de carros. E, no meio da babilônia, a gente enxerga pequenas tendas listradas, coloridas, responsáveis pela lentidão do tráfego: é ela, a feira.

Eu sempre acordo mais contente nesse dia. Parece que a região onde moro renasce, muda de cor. As lojas “chiques” do baixo Oscar Freire cedem espaço para a forma de mercado mais antiga que existe. Ao lado, há dois supermercados, mas sua valentia dá de ombros e ela se mantém ali, firme e forte. O que me chama atenção é que seu formato permanece intacto, há anos. Apesar de toda a modernidade, os alimentos seguem ali, dispostos em bacias plásticas, caixotes, as frutas todas encaixadas em degraus coloridos – na feira o tempo passa em outra velocidade. Lá a rede social não faz sentido, Whatsapp é desnecessário, e-mail não possui qualquer serventia.

Barulhenta, cheia de vida, com diferentes pessoas convivendo, conversando. A vitalidade da feira me encanta, todo mundo cabe ali. Um ótimo antídoto contra a solidão, ali não passamos pela rua com a sensação de sermos invisíveis, como muitas vezes nos sentimos em São Paulo. Ninguém ali tem muita pressa: é preciso pegar as frutas nas mãos, sentir sua textura, ver a cor dos legumes. Isso exige, acima de tudo, disponibilidade e tempo.

Entre as barracas listradas, te olham nos olhos, disputam sua atenção, te paqueram, te dão pedacinhos de fruta. Somos o tempo todo convocados. Gosto de passear por seus corredores, ver as frutas brilhando, os temperos, os peixes, o frango, água de coco, pastel e finalmente: as flores.

A barraca do seu Jaime e da dona Ilma tem uma história bem antiga na minha vida. Toda semana meu pai comprava flores para a nossa casa. Lírios para minha mãe, cravos para mim. De mocinha adorava chegar da escola em casa e ver aquele vaso enorme na sala, lírios brancos, imponentes. Minha mãe sempre escolhia um vaso que combinasse com a decoração, e sempre acabavam brigando, pois ele também queria escolher o vaso, palpiteiro que era. E no meu quarto havia sempre um vaso pequeno, com uma dúzia de cravos bem delicados. na quinta-feira, eu tinha certeza de que nós duas éramos muito amadas. Prova disso era o perfume que invadia nossa casa nesse dia e durava por uma semana toda.

Logo que me casei, comecei a fazer feira. Me sentia, assim, dona de minha casa, de minha família, adulta, quando descia à rua para fazer as compras semanais. A primeira coisa que fiz, ao mudar, foi comprar flores para minha sala. Cheguei à feira dizendo ao seu Jaime que era filha de um antigo cliente. Para minha surpresa, não se lembrou dele. Fiquei sem graça, saí sem desconto – mas comprei logo uma hortênsia. Linda, redonda, só minha. Quando relatei ao meu pai o que havia ocorrido, ele me disse: da próxima vez, fale que é você a menina dos cravos. E assim foi. nunca mais saí sem desconto. Nem sem uma rosa de brinde.

Depois, comecei a comprar cerejeiras (que, embora lindas, sujam a casa), astromélias (que são mais baratas e rendem lindos arranjos), cravínias (que são flores pequeninas, mas que, juntas, parecem uma revoada de pequenos passarinhos), girassóis (que me lembram minha melhor amiga), violetas (que sempre renascem, uma surpresa!), rosas e tantas outras lindas flores para enfeitar minha casa. Descobri-las era um jeito de descobrir algo muito feminino meu, meu lado dona de casa.

Subo minha rua com meu buquê de flores como uma criança que acaba de conhecer uma melhor amiga e logo sai de mãos dadas. Chego em casa sonhando com o vaso no qual vão morar e escolho um lugar para que recebam sol e possam ser reverenciadas por quem entra. Sempre que alguém chega em casa encontra um vaso florido. E mesmo se eu estiver muito triste, nunca me esqueço de comprá-las.

Uma das últimas refeições que fiz em família foi na feira. Comemos eu, ele e minha mãe o mesmo pastel. Nos encontramos, por coincidência, na frente da barraca do seu Jaime, uma semana antes de ele entrar em coma. Toda vez que passo por lá eu agradeço por ter vivido essa memória nesse cenário. Se tenho vontade de comer um pastel às dez da manhã, eu cedo. Mas lírios e cravos nunca mais comprei.