Uma noite, no início da década de 1940, um pai passava em frente à porta aberta do quarto da filha quando ouviu-a dando gargalhadas. Colocando a cabeça para dentro do quarto, viu que ela lia um livro sobre uma babá mágica que levava as crianças para viverem aventuras fantásticas. Esse pai era Walt Disney, e foi assim, por meio de sua filha Diane, que conheceu Mary Poppins.
A relação entre Walt Disney e a personagem teve muitos altos e baixos, graças a uma figura que, até pouco tempo, permaneceu às margens do conhecimento popular: P. L. Travers, sua autora. Embora no filme “Mary Poppins” sua existência seja revelada apenas por um crédito discreto, ela é figura central do recente “Walt Disney nos bastidores de Mary Poppins”, filme que conta a versão “disneyficada” da venda dos direitos do livro.
Os estúdios Disney representam o ideal de família perfeita. Seus filmes pregam uma infância romantizada, a infância que todos nós gostaríamos de ter tido, e convenhamos que é impossível não assistir a um filme deles sem que uma parte nossa secretamente deseje estar lá, vivendo aquela história e cantando aquelas músicas. Se você é um excluído, se ninguém te entende, se a sua família não é funcional e parece não te amar, não tema! Até o final do filme tudo estará resolvido. E foi exatamente isso que aconteceu na versão cinematográfica de “Mary Poppins”. Embora o livro seja uma obra delicada, com uma construção aprofundada da personagem de Mary, criado em base do misticismo de sua autora, o filme apresenta uma versão superficial e adocicada da babá. E vemos um lado negro daquilo que Disney considera a família ideal: para que o público americano entendesse a necessidade da família Banks de contratar uma babá (algo muito distante da realidade dos espectadores de classe média), os roteiristas acharam melhor apresentar os Banks como uma família “quebrada”, que precisava de um agente externo – no caso, Mary Poppins – para consertá-la. A babá só terá sido bem-sucedida quando sua presença não for mais necessária. No caso da família Banks, o problema era devido ao fato do pai banqueiro ser emocionalmente ausente e da mãe sufragista passar mais tempo lutando pelo direito dos votos das mulheres que cuidando dos filhos. No final do filme temos a cena de redenção derradeira, onde o Sr. Banks se aproxima dos filhos ao consertar a pipa deles e a mãe reassume seu papel na casa, simbolicamente amarrando a faixa de sufragista na pipa para servir de rabiola. Um final um tanto quanto assustador, apesar da música que nunca mais vai sair da sua cabeça.
O filme “Mary Poppins” foi lançado em 1964. Cinquenta anos depois o estúdio lançou um novo filme sobre o assunto: “Walt nos bastidores de Mary Poppins”, que conta como Disney passou vinte anos tentando comprar os direitos do livro, chegando ao ponto de convidar a autora para visitar os estúdios para ela ver por si mesma o desenvolvimento do roteiro e dar a aprovação final – uma concessão extremamente rara. Embora o filme capture, com um afinco por vezes até desnecessário, o mau-humor e as particularidades de Travers, ele rejeita as partes mais preciosas de sua personagem em prol de um ideal de família bastante antiquado. Travers, que abandonou a Austrália, seu país de origem, aos 24 anos, era uma poetisa que corria entre os grandes nomes da literatura irlandesa, como W. B. Yeats e Bernard Shaw. Seu maior mentor foi o poeta AE, um homem casado de sessenta anos com quem Travers cultivou uma relação emocionalmente carregada e permeada por gestos de afeto quase que românticos em que durou até a morte dele. AE introduziu-a aos ensinamentos do guru espiritual Gurdjieff e a apresentou a Madge Burnand, com quem Travers manteve uma relação de dez anos, chegando até a morar juntas. É sabido que a autora se relacionava com homens e mulheres, e inclusive estava iniciando um relacionamento turbulento com a americana Jessie Orage quando as negociações com Disney começaram. Outro fator um tanto fora do comum para a época com o qual a autora lidava durante as negociações era o encarceramento de seu filho Camillus.
Camillus fora adotado por Travers quando ela tinha quarenta anos, algo já bastante raro para o tempo, ainda mais quando consideramos que ela era uma mulher solteira (seu relacionamento com Madge já havia terminado). O menino tinha um gêmeo, Anthony, que Travers se recusou a adotar. Camillus só ficaria sabendo sobre Anthony aos 17 anos, quando um estranho curiosamente parecido com ele lhe acostou em um bar. Após descobrir a verdade sobre sua família, o menino passou a beber cada vez mais até ser preso por dirigir bêbado.
Relacionamentos bissexuais, crenças místicas, um filho que descobre aos 17 anos ter um irmão gêmeo… é uma pena que isso tenha ficado de fora da construção cinematográfica da personagem de P. L. Travers. Reduzida a um clichê de velha ranzinza, eles a pintam como uma mulher frígida e solitária, e, como espectadores, não conseguimos entender como essa mulher foi responsável por aquecer corações de crianças de todas as idades, até hoje. Eles esquecem que, se uma pessoa é capaz de produzir tanto amor nos outros, ela mesma deve estar transbordando da coisa. E P. L. Travers tinha amor; amor por seu filho, seus namorados e namoradas, e, principalmente, amor por sua vida. Pois ela nunca, em nenhum segundo, se reduziu a viver a vida de maneira diferente daquela que queria.
E, embora a Mary Poppins de P. L. Travers não cante e dance como a de Walt Disney, ela nos ensina uma lição valiosa: na vida, não adianta se esconder. É preciso enfrentar os problemas de frente. Mary, com sua mão firme e coração quente, nos mostra que não importa o quão assustadoras as coisas são, se formos fiéis a nós mesmos, abrirmos nossos olhos e seguirmos em frente, mesmo com todas as dificuldades, tudo ficará bem. É uma ternura valente que nos faz sentirmos seguros, mesmo quando a missão dela estiver terminada, mesmo quando ela já tiver partido naquele vento do Oeste e não estiver mais do nosso lado, quando formos apenas crianças solitárias presas em corpos de adultos.