Vocês leram nos jornais ou nas redes sociais. O guru mais famoso das celebridades brasileiras foi acusado de assédio. Houve alguma comoção? Houve. Sempre há. Tudo há. Hoje as pessoas se comovem com fotinho de cachorro com cara triste. Mas não tanta, ainda bem, uma vez que o caso não deveria ser novidade. Gurus e líderes religiosos são pegos em seus instintos mais carnais desde a invenção dos deuses, dos totens, da religião. E não me refiro somente ao hinduísmo, mas a outras religiões, do padre que apalpa o pipi do coroinha ao sensei que leva a ocidental encantada pelo budismo ao Burgão Grill no sábado à noite, na Vila Matilde. No caso de líderes hindus, especificamente, sabemos que o seu supereu está sob constante influência do instinto, em uma inversão fantástica com o id.
Há uma história célebre. Quando os Beatles visitaram a Índia, por insistência de George Harrison, Maharishi teria flertado com uma amiga de John, que não gostou nada da história. Nem os outros Beatles (menos George). Há muitas interpretações para a música “Sexy Sadie”, que consta no Álbum Branco, mas uma delas é de que seria uma resposta ao assédio. Verdade, mentira, confesso que não sei. Os especialistas em Beatles podem responder melhor, mas as respostas variam.
O caso recente de Prem Baba não é para deixar ninguém de queixo caído. A primeira coisa que sempre estranhei é que Prem Baba é brasileiro, católico (batizado), de modo que jamais poderia ser hinduísta – a conversão ao hinduísmo tradicional é proibida. Ou se nasce hindu, ou não é hindu. Até no judaísmo a conversão é autorizada, embora complexa – além de cara. E, em geral, no judaísmo mais ortodoxo, a resposta é um sonoro não. Mas não entrarei em detalhes.
Consulto referências e entrevistas de Janderson – vamos chamá-lo assim? –, e ele diz que não se considera hinduísta, mas, antes, que “o conhecimento que transmite é universal”. Ora, cara pálida, com todo o respeito, suas práticas vêm do hinduísmo, sim. Tive contato direto com sua filosofia e a base toda é hinduísta. Essa conversinha de “universal” serve para tudo. “Deus é universal”. Bullshit. Não, Deus não é universal. Até porque no hinduísmo, como todos sabemos, o número de deuses é maior que o de insetos em todo o planeta. Claro que isso é uma saída sutil para um dos maiores tabus do hinduísmo formal: ninguém se torna hinduísta. Ou nasce assim, ou bau-bau. Você pode conhecer seus preceitos, segui-los inclusive, mas jamais será um de nós, por assim dizer.
Como os ditos “judeus messiânicos” (nome detestável, mas assim eles se autodenominam) se dizem judeus: não, eles são cristãos que se apropriam dos ritos e da tradição judaica e hebraica. Mas judeus não são. Pelo contrário, são cristãos. Como Janderson, o Prem Baba, é cristão. Uma vez batizado, bau-bau. A não ser que a pessoa peça que seja excomungada via Vaticano, em um processo burocrático, mas possível. É possível. Uma ex-namorada, inclusive, abrindo um parêntese, fez isso. Ela, que vinha de família libanesa, de cultura islâmica, e foi batizada no cristianismo, namorando um judeu ateu. Enfim, o mundo é um lugar muito esquisito, e daqui pretendo vazar o quanto antes.
Sinto que a espiritualidade é uma necessidade, mais do que uma questão de fé genuína propriamente dita. Conte a um alienígena que acreditamos num Deus que jamais apareceu uma vez sequer, senão através de fenômenos naturais em toda a Bíblia (seja na hebraica-Tanakh ou no Novo Testamento), mandando recadinhos através de um gago quase epiléptico, ou de um revolucionário cabeludo e revoltado que saía quebrando tudo no Templo, e esse alienígena deve nos eliminar com alguma arma a laser em milésimos de segundos.
Nada contra a religiosidade. Não levanto bandeira alguma – a única bandeira que levanto é a da minha mãe –, mas não precisamos ler Freud para saber que precisamos de uma explicação sobrenatural para nossa existência, para nossos sofrimentos e para nossas maiores questões que a filosofia, ao longo de séculos, não deu conta. Inclusive sinto que a antropologia é mais bem-sucedida nesse sentido, ainda que também não satisfaça todos nossos anseios, martírios e interrogações.
De modo que encontrar um guru espiritual, um bem-estar (modo simplório como as pessoas se referem a sentir-se bem em tal culto, serviço ou cerimonial religioso), não é uma questão de fé, mas de necessidade e de medo. Como disse, não precisamos de Freud, basta olharmos para nós mesmos. O medo nos move, o medo nos dirige, e o medo cria a maior ficção da consciência: a de que existimos.
Não é culpa de ninguém. O sofrimento é inato, inescapável; a dor veio, vem ou virá. E uma hora ela chega na voadora. Procuremos Janderson, o Prem Baba. Ou vamos meditar. Falo de práticas orientais que, para uma parcela das pessoas, substituiu as concepções religiosas mais conhecidas do povo brasileiro. A maioria vai à missa aos domingos. Outros, aos cultos semanais de uma igreja protestante; outros ainda guardam o sábado judaico. Mas há gente que busca respostas na filosofia e na teologia oriental, que, inclusive, eu acho muito interessante, mais até do que a ocidental, para não parecer que este texto é só porrada contra essa onda oriental que chegou à Europa e às Américas no século XX, e de modos indiretos, já no século XIX.
Além do judaísmo, o sistema religioso que mais conheço e com que tenho mais contato é o budismo de linha japonesa (shin budista). Diferente do zen budismo, ou do budismo tibetano, vastamente difundidos pelo Ocidente por diferentes razões, o shin budismo não tem meditação. Não despreza a meditação, nem a condena, nada disso. Apenas, para essa escola budista – a mais popular no Japão, mais que o zen –, a meditação não pode fazer muita coisa para nos ajudar. Contudo, o shin budismo (terra pura), no Ocidente, é algo pouco conhecido e bastante restrito. As pessoas em geral querem saber de meditação. Conheço gente que entrou em contato com senseis shin budistas e, ao saberem que não havia meditação, disfarçaram e nunca mais voltaram. Muitos para terem uma vida melhor, mais saudável, menos ansiosa, mais tranquila, mais “em paz”. Entendo.
Eu também quero tudo isso. E busco de outros modos, sigo aquela música do Queens of the Stone Age: “better living through chemistry” (ou, ainda, aquela mais radical, “nicotine, Valium, Vicodin” etc.). Há quem busque paz no sexo, vazio ou com amor, afeto. Outros no álcool. Alguns na missa dominical. Outros nas palavras sábias de um guru. Há quem acenda sua vela no sábado e recite o kiddush. Outros na meditação. Respeito todos esses escapes. Mas permita-me, caro leitor, chamar tudo isso de “escape”.
O que se passa com a meditação, contudo, é que há poucos estudos sérios que comprovem uma estabilidade ou um apaziguamento mental. Pesquisas neurológicas recentes comparam meia hora de meditação a uma hora de exercício físico na academia. O corpo humano é uma máquina, diria minha priminha de seis anos. E o corpo produz substâncias mil que alteram o estado mental da pessoa. Jogar bola pode te deixar em paz.
Isso invalida a meditação? Sim e não. Opinião pessoal de quem estuda o assunto (tanto o da neurologia como o do budismo) e tem contato direto com o budismo: a meditação é excelente, mas precisa ser muito, muito, muito, bem-feita, com orientação, prática ad infinitum e uma disciplina mental que em geral nós, seres humanos, não temos (somos hiperestimulados por fatores internos e externos por centenas de vezes a cada minuto). Um sensei zen budista tem anos e anos de prática e, ainda assim, se lhe for perguntado, ele dirá que não sabe meditar ainda. “Talvez nunca saberei”. Imagine o Enzo que vai ao show de uma banda Mombojó qualquer de noite, já pensando na cerveja artesanal que irá beber ao som do conjunto, indo meditar num espaço zen na Vila Madalena. Esse sujeito não está meditando é nada. Ele está de olhos fechados, acreditando com todas as forças que está “sentindo algo”.
Evidente que cada um faz o que dá na telha, cada um faz o que quer, a vida é de cada um, e eu não pago essa tarde no espaço zen do Enzo. Ele faz o que quer com seu dinheiro, como eu faço o que quero com o meu. Mas meditando ele não está. De uns tempos para cá, inventaram até um nome bonito, americanizado, para isso: “mindfulness”. Que, se for procurar no dicionário de Oxford, vai constar como sinônimo de “wad”. Que, para quem não conhece um pouco de cockney, é o mesmo que “cash”. Money. Dinero. Bufunfa.
Em tempos turbulentos como os nossos, aqui pelo Brasil, essas questões espirituais parecem atingir sentidos políticos. A tendência de transformarmos nossos candidatos diletos em mitos, tal como um Lula, de um lado, ou um Bolsonaro, do lado oposto. Versões politizadas do Janderson Prem Baba. A religião e a política têm esse lado comum: elas conferem uma identidade a um indivíduo que, muitas vezes, não a possui. É preciso identificar-se com algo, fazer parte de um grupo. Como diz no dito, a gente sai do colegial, mas o colegial não sai da gente. Eu não me identifico com nada; sou um misto de origens, perdi meu grupo da adolescência e, para piorar, ainda estou procurando um sentido à vida.
A resposta está aí, vagando pelo ar. Não é possível capturá-la, mas é bom sentir o gostinho. E mostrar aos outros. Porque identidade só depende de um outro que nos reconheça como tal, principalmente em oposição. Sem isso, não sou ninguém. Tudo isso para enfrentar a dura verdade, que precisamos encobrir, que é a de que é isso mesmo, pessoal, não somos ninguém mesmo.