07:15 
Acordo.
Olho-me no espelho. 
Tenho 44 anos.
Sorrio. Um leve franzir de testa. 
Apesar do breve contentamento, sei bem que a toxina botulínica não irá cessar a passagem do tempo em minha face. Os tratamentos estéticos podem ser eficientes para prevenir temporariamente o surgimento das rugas de expressão, mas o tempo urge em minhas células, que não param de se movimentar em seu ciclo de vida — nascem, crescem, reproduzem-se e morrem.

O processo de envelhecer nos lembra que somos finitos e nos faz confrontar, cedo ou tarde, a nossa transitoriedade. 

Em Sobre a transitoriedade (1915), Freud descreve o diálogo com um jovem e famoso poeta enquanto os dois caminhavam em um ensolarado dia de verão. O poeta admirava a beleza da paisagem, mas, porque era efêmera e logo desapareceria, com a chegada do inverno, não conseguia extrair dela qualquer alegria. O psicanalista argumentava que a beleza, justamente por ser transitória, deveria ser apreciada.

Esse pensamento me fez lembrar do meu tempo vivido — e o espelho que me encara, parece me perguntar:
— Como se sente?
— Às vezes eu sinto que o tempo da vida flui mais rapidamente do que as batidas do meu coração. 

Preciso me arrumar. O tempo foge. É hora de ir para ir para o trabalho. 

Ao caminhar para o consultório, me ocorre uma cena do filme A grande beleza, de Paolo Sorrentino. Aparece uma sorridente mulher, de jaleco. Ela segura um grande espelho. Em uma sala suntuosa, pessoas de diferentes idades esperam ansiosas pelo médico e o restante de sua equipe — ovacionados avidamente quando chegam. Inteligente e ácida, a cena nos presenteia com a fala do médico a uma de suas pacientes, uma senhora idosa. Em sua onipotência, confundindo-se com alguma grandiosa divindade, o médico, durante a aplicação de botox nos lábios da senhora, questiona:
 — Quer voltar trinta anos, quando chovia no fim de agosto? Eu levo você lá.

O cenário imaginado pelo cineasta italiano, embora fantasioso, não me parece muito distante do que observo em meu dia a dia, nas redes sociais. Deparar-se com as perdas que o envelhecimento traz é difícil, por isso, muitas vezes consciente e outras tantas inconscientemente, mascaramos, burlamos ou mesmo negamos essa condição.

Acredito que precisamos cotidianamente cultivar o sentimento de aceitação do envelhecer, que é um processo contínuo inerente à vida. Será que nos tornaríamos mais cuidadosos com a nossa saúde e com as nossas relações afetivas? Ficaríamos menos assombrados com as mudanças que nos são impostas pelo tempo? Reconheceríamos com mais facilidade o potencial criativo ainda existente nessa fase?
Viveríamos melhor?

***

Abro a porta do meu consultório. O sol avança pela janela e, ao fundo, vejo o divã. São nove horas da manhã.

***

14:40 
Laura estaciona o carro próximo ao parque Ibirapuera e, apressada, caminha em direção ao consultório do seu analista. Não sabe bem o motivo, mas observa que está quase correndo. Do que estaria correndo? Finalmente, chega e aguarda pela sessão, conferindo o relógio a cada minuto. 

— Laura!

Cumprimentam-se à distância. Ela deita no divã, encanta-se ao notar a bela orquídea que traz cor à sala austera. 

— Hoje faço 45 anos.
Silêncio.

Ela fecha os olhos e se vê transportada para o momento em que se deu conta de que se tornara uma mulher adulta. Ocasião de profunda alegria. 

Agora, ao completar mais um ano de vida, esse sentimento vem acompanhado de algo novo: pensa nos cabelos brancos que começaram a aparecer quando ela tinha 42 anos, pensa na dor do joelho que sentiu na última viagem que fez com seu marido, pensa amorosamente nos filhos crescidos e em seus pais. 

Um poema que fez aos 20 anos lhe vem à mente. Resolve declamá-lo.

Não se mova!
O céu está estrelado, lindo!
Mamãe caminha na quadra…Não se mova!
Papai, deitado na rede, ao som do silêncio da noite escura, dorme.
Sonha?
Não se mova?
Sinto medo do amanhã.

Depois, com a voz embargada, complementa:

— Sabe, Zé Francisco, tenho a impressão de que sempre vivi em descompasso com o tempo. É assustador perceber a finitude em tudo o que amo e em mim mesma, assim como é estranho perceber que meu corpo, por exemplo, que me é tão familiar, está se modificando. Movimento invisível que me escapa e desorienta. O que me espera?

 — E não estamos sempre em misteriosa travessia? — ele responde, de forma terna.
Laura se deixa transbordar.
O analista se comove ao pensar que ele, um homem de 75 anos de idade, e ela, uma mulher trinta anos mais jovem, compartilhavam, naquele instante, a percepção de sua frágil condição humana. 
Cada qual em sua impermanência.Uma emoção rara ocupou o clima da sessão, que estava próxima do fim. 

*** 

16:20 

Combinei de encontrar um amigo na frente do Auditório Ibirapuera. Preciso achar uma vaga de estacionamento. Vejo uma mulher entrar em seu carro. Eu não a conheço — é Laura. Ela parte e estaciono o meu veículo onde antes estava o seu. Aproveito que tenho alguns minutos de sobra e sigo pelo parque, deixando o sol tocar a minha pele. 

Avisto o Renato.

Durante o tempo que passamos juntos ele desabafa questões pessoais relacionadas à sua experiência de paternidade. A força com que entoa suas palavras sinceras e ásperas me faz perceber o quanto sofre. Diz sentir que a pessoa que um dia foi havia morrido com o nascimento do filho.

O menino, que tem cinco anos de idade, é uma criança amorosa e cheia de energia. O pai o ama profundamente e se dedica a ele com todo afinco, mas também se ressente, segundo ele. A chegada do filho levou sua liberdade e independência. Em paralelo, vive com pesar as mudanças físicas e emocionais de um homem de quase cinquenta anos. 

A vitalidade exuberante do menino coexistia com a vivência dolorida da perda da sua. Esse pai — em luto e nostálgico de um tempo passado — frustrava-se com o tempo presente, distinto daquele que desejava. Vivia uma profunda sensação de estranhamento em relação a si mesmo e a sua vida atual. 

Despeço-me do meu amigo e passo a refletir sobre o teor de nossa conversa.

Estaria se dando conta da passagem do seu tempo ao se defrontar com o alvorecer de seu filho? Poderá renascer? 

Torço para que ele elabore seu luto — talvez possa lembrar-se de viver a beleza do seu momento presente.

***

20:30

À noite, recebo a ligação de uma grande amiga, Manoela, que admiro tanto por sua capacidade de lidar com as agruras da vida quanto por seu humor irreverente. Pergunta se eu seria uma das testemunhas do seu testamento. 
Inusitado lembrete?
Despojada e livre de julgamentos, ela me falou: 

— Na manhã do meu aniversário, acordei mexida ao perceber que já era mais velha do que minha mãe jamais foi. Espero viver por muitos anos, mas, se o câncer voltar, quero deixar tudo organizado.

 Depois, me pergunta: 
—  Você acha esse convite fúnebre? A gente precisa quebrar o tabu que é falar sobre a morte… 
Minha amiga sabe bem que não é eterna. Ela fez 48 anos, e aos 35 teve câncer de mama. Recuperada há anos, segue saudável. Perdeu sua mãe, Ana, para essa doença. Recordo-me bem desse dia: eu tinha 12 anos e estava estudando matemática quando o telefone tocou. Eu gostava muito da Ana.
 
***

23:00 

Hoje, 18 de agosto, minha querida avó, Iracema, faria aniversário. Dizem que herdei as suas feições e seu corpo longilíneo. Vovó Cema morreu dois anos depois do meu nascimento — pouco a conheci. Como eu gostaria de, agora adulta, poder conviver com ela!

Sinto esse tipo estranho de saudade
É bom saber que sou parte dela e que a sua existência, de certa maneira, continua através da minha. 
Alcanço um dos livros à cabeceira da cama e me emociono com um poema de Walt Whitman.

Pleno de vida agora, consistente, visível, 
Eu, quarenta anos vividos, no oitenta e três dos Estados, 
Ao homem que viva daqui a um século, ou dentro de quantos séculos for,
A ti, que ainda não nasceste, dirijo este canto.
Quando leias isto, eu, que agora sou visível, terei me tornado invisível,
Enquanto tu serás consistente e visível, e dará realidade a meus poemas, voltando-te para mim,
Imaginando como seria bom se eu pudesse estar contigo e ser teu amigo:
Faz de conta que estou contigo (e não duvides muito, porque eu estou aí nesse momento).

***

Encontros transitórios que nos marcam — no infinito movimento do tempo.