Estatueta de Orí Olókun. Foto: Reprodução
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De quem é? Consciência diaspórica na devolução de obras de arte

Um dos grandes poderes da arte é transcender fronteiras, conectar culturas e contar histórias universais. Poucas coisas são mais emocionantes do que ver uma narrativa específica conquistar o mundo da maneira mais abrangente. A universalidade de uma obra, porém, não concede a nenhuma nação o direito de tomar aquilo para si. Infelizmente, por trás de muitas obras — africanas, ameríndias, praticamente de qualquer lugar que não seja a Europa —, repousa uma sombria narrativa de pilhagem e despojo. Durante séculos, nações europeias se apropriaram de objetos valiosos e sagrados, esvaziando comunidades de suas heranças culturais. Hoje, de forma tão tardia, o mundo se vê diante de um debate urgente e complexo sobre a restituição dessas peças às suas origens.

Bronzes de Benin expostos no British Museum

O processo de descolonização — onde quer que ele se atreva a acontecer — é longo e mais aprofundado do que se imagina. Para que se comece a ter noção do quão enraizada é a lógica colonialista, basta pensarmos no quão custoso foi para que chegássemos a simples questionamentos, tais quais: como e por que o Louvre tem tantas peças africanas, asiáticas, oceânicas, pré-colombianas? Ou então: por que elas não estão expostas em seus lugares de origem?

A ideia de que essas peças — em sua grande maioria, obtidas de formas violentas — cabem mais em inspeções antropológicas do que em interpretações artísticas é um mal que tange, e diminui, a sociedade moderna, ainda mais quando o expandimos para uma perspectiva mais generalizada de preconceito. Ao menos, à luz dos novos tempos, algumas restituições culturais vêm acontecendo. Exemplo disso são as devoluções de obras importantes a Madagascar, Senegal e Benin, realizadas em 2020 por Emmanuel Macron, presidente da França. 

A consciência diaspórica

Exibição “Primitive Art Masterworks”, de 1974, em Nova York. O Museu da Arte Primitiva hoje faz parte do MET.

A consciência diaspórica, em linhas gerais, pode ser definida como a consciência coletiva e a experiência compartilhada por comunidades diaspóricas, formadas por pessoas dispersas geograficamente de sua terra natal original. Envolve uma profunda conexão com as terras-mãe e as culturas de origem, juntamente com desafios de assimilação cultural, preservação da identidade e luta contra a discriminação e marginalização. 

Sua relevância no contexto artístico se dá porque, sendo ela moldada pela memória coletiva de eventos traumáticos que levaram à diáspora, pela transmissão de tradições e histórias de geração em geração, intrinsecamente traz à tona as dificuldades da experiência contínua de viver como o “outro” em sociedades estrangeiras — e isso inclui os constantes saques de patrimônios artísticos, que podem ser vistos como ataques pessoais (ainda que tenham acontecido há centenas de anos).

Como essas comunidades são afetadas por desigualdades estruturais, a consciência diaspórica frequentemente envolve a defesa de direitos, a luta contra a discriminação e a busca por igualdade e reconhecimento. Com uma coisa levando à outra, isso tudo evidentemente pode influenciar a produção cultural, artística e intelectual. 

Muitos artistas diaspóricos exploram suas experiências e identidades nas obras que criam, contribuindo para a diversidade cultural e para uma compreensão mais ampla da experiência humana.

O curioso resgate de Wole Soyinka

O escritor nigeriano Wole Soyinka. Foto: Yagazie Emezi/The New York Times

Wole Soyinka, o renomado escritor nigeriano, é conhecido por sua contribuição para a literatura e o teatro mundial. Sua obra abrange uma variedade de gêneros, incluindo peças teatrais, romances, ensaios e produções poéticas. Em reconhecimento à sua excelência literária e à sua luta pela liberdade de expressão, Wole Soyinka recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1986. Uma de suas obras mais aclamadas é A Dance of the Forests (1960), uma peça teatral que marcou sua estreia no mundo do teatro, considerada uma crítica poderosa às contradições e aos dilemas enfrentados pela sociedade nigeriana na época de sua independência do domínio colonial britânico. E esse é só um dos muitos exemplos de sua habilidade em abordar questões universais por meio de uma lente africana. Hoje aos 88 anos, continua a inspirar gerações de escritores e leitores ao redor do mundo, ao mesmo tempo em que oferece uma voz única e vibrante à rica tapeçaria da literatura africana contemporânea.

No seu livro de memórias, You Must Set Forth at Dawn, de 2006, Soyinka descreve o desenvolvimento da sua consciência de diáspora e como parte desse desenvolvimento tem o Brasil como palco. A diáspora africana estabeleceu uma conexão intrincada entre diferentes territórios, culturas e pessoas. É através dessa rede complexa de migração forçada e voluntária que a consciência diaspórica emerge, unindo indivíduos e comunidades dispersas pelo mundo. Um episódio emblemático desse fenômeno interno do escritor ocorreu quando encontrou uma peça de arte sagrada na Bahia, nos anos 1970, desencadeando um resgate inesperado.

Soyinka ficou sabendo que a mítica estatueta de Orí Olókun — uma obra-prima da arte africana retirada ilegalmente da Nigéria e que representa o espírito do mar na tradição iorubá —, que tinha um paradeiro desconhecido sobre o qual muito se especulava, estava afinal numa casa particular na Bahia. Saber disso despertou nele um senso de dever e urgência em relação à preservação e à restituição do patrimônio cultural africano. Algo que já vinha crescendo em sua consciência, mas que ali ganhou materialidade numa tomada de ação categórica. Não só a peça não estava na Nigéria, como ela também não estava nem em um museu, onde poderia ao menos ser vista por um público maior. 

De acordo com o que Soyinka descreve no livro, a história foi incrível: “Não pude acreditar na nossa sorte! Orí Olókun, diziam-me esses colegas, não estava trancado em um museu nacional com fortificações, guardas, dispositivos de monitoramento eletrônico, feixes de laser cruzados, guardas robóticos estranguladores e tudo mais, mas estava em uma galeria privada. E não era nem mesmo uma galeria pública, era uma espécie de estúdio-galeria, que pertencia a um famoso arquiteto!” 

No entanto, o resgate do Orí Olókun não foi uma tarefa fácil. Soyinka enfrentou uma série de desafios legais e burocráticos para garantir a devolução da peça à Nigéria. Questões relacionadas à propriedade, documentação e repatriação legalmente reconhecida foram obstáculos significativos nesse processo. Deixando o lado cinematográfico da coisa toda — algo que poderia ser tratado como um thriller de espionagem hitchcockiano ou como uma comédia surrealista de Terry Gilliam —, esse caso ressalta as dificuldades enfrentadas não apenas por indivíduos, mas também por governos e comunidades que buscam recuperar suas heranças culturais. O sistema complexo de coleções privadas, museus e leis internacionais torna a tarefa de restituição uma batalha árdua.

O resgate também representa um momento de resistência e resiliência. A ação de Soyinka e seus parceiros demonstra o poder da consciência diaspórica em conectar e mobilizar pessoas ao redor do mundo na luta pela preservação da herança cultural africana. Exemplifica a importância de se reconhecer e valorizar o patrimônio cultural de um povo, especialmente quando foi injustamente retirado de seu contexto original, além de servir como um lembrete poderoso de que a conscientização e a ação são fundamentais na luta pela justiça histórica e na preservação das riquezas culturais da diáspora africana.

Reparações históricas

Objetos e estatuetas da coleção de Arte Vodu Africana exibidos em Estrasburgo, na França, 2014.

Atualmente, a questão da restituição de obras de arte ganha ainda mais relevância, já que o debate global sobre o legado da colonização e o reconhecimento da necessidade de corrigir injustiças históricas crescem a cada dia. Países como Alemanha e França agora se veem diante de um dilema moral e político: como lidar com uma herança cultural roubada que faz parte de sua própria identidade artística e patrimonial? A devolução de obras, ao menos algumas, seria um ato de justiça, um gesto de reconciliação com o passado e uma oportunidade de reconstruir pontes entre povos e culturas. No entanto, a tarefa prática de repatriar todas as peças roubadas é complexa, envolvendo questões legais, logísticas e museológicas.

Para compreender a magnitude desse debate, é preciso olhar para trás, para os episódios históricos que moldaram essa realidade. Durante o período colonial, as potências europeias realizaram expedições e saques, alegando descobertas científicas e explorando terras desconhecidas. Nessas incursões, uma miríade de objetos valiosos foi roubada das comunidades africanas, despojando-as de sua identidade cultural e religiosa. As peças mais emblemáticas nesse contexto são os Bronzes de Benin, um conjunto de esculturas e placas de bronze que adornavam o Reino do Benin, no atual território da Nigéria. Em 1897, uma expedição britânica saqueou e incendiou a cidade de Benin, levando consigo milhares de peças preciosas. Essas obras-primas do período medieval africano foram parar em museus e coleções privadas no Reino Unido, onde permaneceram por décadas, afastadas de sua origem e significado cultural.

O movimento de descolonização que ocorreu na segunda metade do século passado trouxe à tona o questionamento sobre a posse desses muitos objetos de arte africanos. Na esteira da independência de várias nações africanas, surgiram vozes exigindo a restituição das peças saqueadas. Países como Gana, Nigéria e Senegal lideraram esse movimento, reivindicando a devolução de sua herança roubada. Esse clamor de justiça histórica ecoou por todo o continente, alimentando o desejo de resgatar a dignidade e a história que foram subtraídas.

A questão não se limita apenas à África, mas também abrange as Américas e culturas originárias. Durante os períodos pré-coloniais, diversas civilizações floresceram em territórios que hoje correspondem às Américas, deixando um legado artístico e cultural de valor inestimável. Muitas dessas obras de arte, caracterizadas como “primitivas” pela perspectiva ocidental, foram adquiridas por museus e colecionadores europeus e norte-americanos durante os séculos XIX e XX. Estátuas, máscaras, cerâmicas, tecidos e outros artefatos indígenas foram retirados de suas comunidades de origem, resultando em um esvaziamento cultural profundo.

A história das civilizações pré-colombianas, como os Maias, Incas, Astecas e várias outras culturas indígenas, é rica em expressões artísticas e simbólicas que refletem sua cosmovisão única. Mas muitas dessas peças foram retiradas de seus contextos originais e, assim como na arte africana, são frequentemente encontradas em exibição em museus europeus e norte-americanos.

A devolução dessas obras seria uma forma de respeito aos povos originários, permitindo-lhes recuperar parte de sua herança cultural e valorizar ainda mais suas raízes. Além disso, a restituição pode contribuir para a valorização e preservação dessas culturas, promovendo um diálogo mais equitativo e inclusivo entre as sociedades.

Essa arte é de quem?

Departamento de Artes Primitivas, no Louvre. Foto: Reprodução Willimote & Associés

O debate sobre a restituição da arte africana e indígena das Américas é um lembrete da necessidade de repensar nossa relação com o patrimônio cultural global. É uma oportunidade para questionarmos os legados coloniais e promovermos a justiça histórica, reconhecendo que a arte é uma expressão vital da diversidade humana e que deve ser respeitada e preservada em seu contexto cultural original. A restituição, quando feita com sensibilidade e respeito, pode ser um passo importante na construção de um mundo mais inclusivo e equitativo, onde todas as culturas sejam valorizadas e celebradas em sua plenitude.

No cerne dessa discussão, a universalidade da arte surge como um ideal a ser buscado. A arte, em sua essência, deveria transcender as barreiras geográficas e culturais, conectando a humanidade em sua diversidade. Porém, como produto de um mundo imperfeito, ela é muitas vezes o reflexo dos desequilíbrios de poder e das injustiças históricas que assolaram o planeta.

Ao reconhecer a violência do passado e buscar meios de corrigir esses erros, países como a Alemanha e a França podem liderar um movimento de transformação com a força para desencadear uma nova era de respeito mútuo e colaboração. Quem sabe, de uma atrasada libertação. Como o caso Wole Soyinka nos mostra, a crítica e o questionamento são noções basilares para isso. Sem elas, toda e qualquer liberdade estará ameaçada.