Catuçaba é um lugar mágico. Ir até lá, e se permitir sentir o impacto que a natureza tem naquele lugar, é transformador. Apesar de estarmos pensando sobre o tema pausa há algum tempo, temos que admitir que fizemos nossa reunião de pauta com nossos editores convidados pelo Skype. Claro que com a promessa de logo nos encontramos na vila para, ao vivo, finalmente nos conhecermos. Não conseguimos. Não conseguimos porque, mesmo pensando sobre o assunto há mais de três meses, pesquisando, conversando, absorvendo e avaliando novas formas de pensamento sobre o assunto, é muito difícil darmos essa quebra no nosso dia a dia maluco para ficar um único dia que seja fora de São Paulo. O Peéle e a Yentl são inspiradores, e não queríamos ter somente o texto deles de editores convidados. O mais importante para nós é que não importa a maneira como a entrevista foi feita, mas que as ideias e a vida desse simpático casal sejam passadas para frente.
Vocês são publicitários de formação. Como vieram parar na vila de Catuçaba?
Foi quase sem querer, e essa chegada começa há sete anos. Morávamos em São Paulo e tínhamos a consciência de que estávamos em uma fase legal nas nossas carreiras… E que queríamos encontrar um lugar nosso, que não era lá. Hoje, entendemos que era uma busca inconsciente por um refúgio. Um local fora da frequência urbana, que é caracterizada por muito excesso, desperdício, pressa e um pouco de alienação… Como uma brincadeira de finais de semana, começamos a procurar terrenos, casas ou qualquer espaço que estivesse disponível. Depois de algumas buscas, o Peèle lembrou de um carnaval que passou em São Luiz do Paraitinga e procurou no Google. Quando ele deu zoom, viu um pontinho vermelho no meio de uma região bem isolada. Lá estava Catuçaba: oitocentos habitantes, um dos últimos redutos genuinamente caipiras do país. Um dos poucos lugares onde ainda existe o festival das Cavalhadas, que é uma festa que marcou a infância do Peèle em Goiás.
Cinco cidades diferentes como nossas residências, dois países distintos, sete anos se passaram, e hoje moramos no sítio. E essa decisão também foi quase sem querer. Porque acabou não sendo uma questão de escolha; foi apenas seguir o fluxo que nossas próprias decisões e buscas ditaram. Todos nossos sonhos, todos valores que queremos exercitar, todo conhecimento que queremos aprender e trocar têm o sítio como o cenário mais rico para isso acontecer.
Como o local em que você trabalha influencia sua produção?
Estar na roça é incorporar, ao mesmo tempo, uma noção sistêmica das coisas e uma postura de presença e foco total no micro. Isso influencia demais como encaramos qualquer tipo de trabalho – isto é, qualquer movimento, dedicação de energia e produção de alguma coisa. O ambiente nos ensina isso quase que de forma chantagista: se a gente não entender a relação e a interdependência das coisas, as produções (do alimento até as relações) sofrem na qualidade, quantidade… Da mesma forma, se a gente não está centrado e consciente, com pé no chão e mão na massa, no momento presente, as coisas não fluem.
Aquela sensação de “ir abrindo tabs no navegador para ler depois” não rola no cotidiano daqui! As coisas estragam, a chuva chega, o bicho vai para outro lugar, a luz muda, a nascente de água não pode esperar.
A gente exercita ver a cadeia invisível das coisas. Ou seja, uma vaca exige ter um porco e um galinheiro, estar atento em setembro, e só marcar Skype calls entre 10h15 e 11h50 – entre muitas outras coisas. A vaca leiteira saudável e respeitada dá leite de qualidade e com quantidade. Come pasto e fubá, do milho plantado em setembro, colhido em janeiro e triturado ao longo do ano. Esse leite a gente tira de domingo a domingo, duas vezes ao dia. Após a ordenha, leva quase duas horas entre limpeza e preparação do leite para o processo de coalho. Esse é o tempo de abrir o computador. Depois disso, o processo de feitura do queijo leva mais uma hora e traz um subproduto, o soro. Três litros de soro/dia que não podem ser desperdiçados. Bebida preferida para hidratar, alimentar e engordar porcos e galinhas – estes que comem milho e os restos orgânicos da casa e da horta, que dão ovos, comem as cobras, equilibram o sistema, geram filhotes e novas fontes de alimento para nós.
Ter em mente esse antes e depois dos processos que fazemos nos faz aprender a ter o máximo de eficiência nisso também. Por exemplo: evitamos ao máximo o desperdício de comida, cozinhando sempre o necessário; as cascas de mandioca e folhas varridas viram matéria orgânica para a horta; plantamos em consórcios para enriquecer e otimizar a horta etc.
Qual vocês acham o melhor proveito que conseguem tirar da tecnologia, estando onde estão?
Primeiro, em entendê-la como facilitadora e ferramenta que deve funcionar para a gente, sempre integrada às nossas vivências e produções. Do fogo à geladeira. Do timer com energia solar para irrigar a horta em tempo de seca a uma estação do tempo que pega data meteorológica da nossa microrregião… Da internet para trocar informação, pesquisar, nos conectar com pessoas à internet do reddit, HBO e YouTube.
Para essa relação ser saudável e sensível, a gente precisa ter muita consciência e alfabetização. Como falamos antes, a escolha de viver no mato foi pelos prazeres e pelas responsabilidades que isso representa: cuidar da terra, dos animais e estar envolvido com as pessoas, e isso exige uma presença total. Assim, mesmo tendo Wi-Fi e todos gadgets disponíveis, esse balanço acaba acontecendo porque o ambiente exige isso.
Qual o papel da natureza na vida de vocês?
Natureza é tudo. Parte presente de tudo o que a gente faz. A cada dia percebemos mais e mais que somos mais felizes quando nos aprofundamos nessa reconexão. É observando seus movimentos mais sensíveis que aprendemos as melhores lições. Tudo tem seu tempo, e somos nós que precisamos nos adaptar. Respirar. Entender.
Viramos seres desconectados, donos de uma verdade que só existe em nossas próprias cabeças. Esquecemos que, na realidade, somos nós os insignificantes dentro dessa relação e que, para nossa sorte, só nos resta abaixar a guarda e aprender o máximo com tudo o que está em nossa volta.
Quando precisam, vocês vêm a São Paulo para trabalhar. Com que frequência isso acontece?
Depende. Pensando agora, deve ser uma média de quatro a sete dias no mês. No último semestre, chegamos a ficar uns três meses sem ir. Mas nossas inspirações estão lá também: amigos, família, ideias, projetos, novidades. Temos necessidade e nos alimentamos disso como todos. A diferença é que nossa decisão é de fazer a “digestão” de tudo no campo, mais perto da natureza, com outro tempo e no encontro com outros estímulos.
É interessante porque isso faz nossa relação com o tempo e o espaço mudar também. Sair de casa significa pegar estrada, seja alguma de terra para ir ao vizinho ou uma grande rodovia para ir a SP, por exemplo. Os quilômetros entre um lugar e outro viram tempo de uma espera, um dever quase que de suspensão, uma pausa. E as horas da viagem viram espaço para a gente conversar, tomar decisões e desligar um pouco a mente de todo sistema que acontece simultaneamente no sítio. Não temos como ordenhar uma vaca a distância, não temos como tirar a roupa do varal, não temos como saber se Dona Cecília passou para deixar os ovos ou não (ela não tem telefone).
Vocês acreditam, de fato, que estamos caminhando para viver num tempo em que nosso tempo poderá ser trocado por experiências? Por quê?
Sim, porque estamos começando a questionar o manual de um sistema que tem como premissa a existência de intermediários no processo, o dinheiro como moeda de troca e as coisas que podemos tocar e ver como validadores de identidade e sucesso.
O acúmulo e a troca de dinheiros por coisas é um hábito perigoso, mas que está tão enraizado na gente, né? Ele precisa estar no meio do caminho: eu preciso usar meu tempo trabalhando em algo para ganhar dinheiro e gastar em outro algo, que faz meu tempo valer a pena. Simplificar essa fórmula, encurtando tempo e dinheiro, seria gastar tempo em algo de forma que esse processo seja o mais sustentável e gratificante possível. Um plano de negócio da satisfação: o que preciso para começar e terminar bem meu dia? Alimento, moradia, interações, produções? Quais recursos, onde, como? Quais custos e como posso pagar por eles (diversificando essas moedas: meu tempo, meu dinheiro, meus talentos)?
Tanto Los Angeles quanto Catuçaba nos permitem exercitar isso quase que sem querer, informalmente. Em vez de pagar mensalidades, a gente acaba trocando por tarefas realizadas, responsabilidades abraçadas; em vez de restaurantes e compras fechadas do mês, a gente acaba ganhando ou dando ingredientes, quitutes e convites em forma de agradecimento por alguma ajuda, alguma semente dada, alguma dica certeira; em vez de pacotes de viagens e hotéis com frigobar incluso, a gente acaba recebendo/se hospedando em casas de velhos amigos ou recentes conhecidos que, a cada troca, conversa, nos fazem conhecer novos lugares, novas formas de fazer o que fazemos cotidianamente.
No final do mês, talvez o P&L fique no break-even. Hehe! O que entrou foi menos, mas o que saiu foi menos também. Mas a gente fez tanta coisa, foi para tantos lugares, falou com tanta gente, comeu tantas coisas novas… Esse número final do que entra e do que sai não pode ser o único indicador de sucesso e de vida vivida.
Vocês estão fazendo vários experimentos de maturação de queijo. Como surgiu o interesse pelo assunto?
Em Los Angeles fizemos um curso de mastering em cheese making e isso nos deu uma base muito legal e também muitos amigos. Acabamos fazendo estágio em fazenda de cabras, e isso nos levou a muitas outras experiências. Tivemos muitas oportunidades de colocar a mão na massa em processos de fazer alimentos do zero.
Como foi a experiência, e por que fizeram o workshop da caverna de queijo?
O workshop da caverna do queijo segue o mesmo formato do primeiro, que foi de construir uma cabana no meio da mata. Reunimos pessoas interessadas em aprender e cocriar no projeto e passamos os dias trabalhando na obra (desenhos, cálculos, transporte e corte dos materiais, montagens etc.).
Também cuidamos com muito carinho de onde vão dormir, o que vão comer, que outros tipos de experiências podem ser legais de curtirem aqui com a gente. É muito legal, porque a troca vem por todos lados, e todos saem ganhando tanto que fica difícil definir os fluxos. Quem ensina ou quem aprende. Quem deu tal ideia genial ou quem se confundiu no meio de algum processo e colocou uma peça no lugar errado. Vira tudo um corpo só.
A ideia da caverna do queijo surgiu da necessidade de um lugar propício para os queijos que estamos produzindo maturarem. Precisam de umidade e pouca luz, e o espaço que tínhamos até então era… Nossa pequena casa! Ela já estava superpopulada de queijos, e isso vinha complicando as tarefas do dia a dia (os queijos seguiam deliciosos. Por eles, ficavam de hóspedes, maturando, para sempre). Então decidimos que ter uma caverna seria um investimento de tempo e recursos que iria dinamizar a rotina e oficializar nossa relação com o leite. E aproveitamos a oportunidade para exercitar uma arte que queríamos muito, a do timberframing (construção de madeira sem uso de pregos ou parafusos, só via encaixes), e também para viabilizar o projeto, chamando pessoas a fim de aprender o processo e passar esse tempo trocando experiências com gente legal, cansando o corpo e refrescando a cabeça.
Passamos uma semana trabalhando doze horas por dia na obra, comendo comidinhas locais com muito amor feitas pela nossa querida vizinha, tirando leite da vaca cedinho, fazendo queijo, aprendendo novos vocabulários, usando ferramentas ancestrais e digitais, desatrofiando o corpo, os dedos e as mãos, acordando e dormindo inspirados por aquilo que a cada hora se configurava na nossa frente.
Em qual momento da vida vocês sentiram que fizeram uma quebra no que estavam vivendo? Como foi?
Foi tudo processual e orgânico. Não foi um choque porque nossa história trouxe constantes quebras. Já tínhamos nossa “quebra” do extremo urbano quando saímos de São Paulo. Só de sair de um grande certo urbano já é uma mudança. E ainda para outra cultura (independentemente de ser estrangeira ou não)… Mais ainda! Ser estrangeiro em algo ou um lugar ensina bastante.
Além de automaticamente nos tornarmos mais responsáveis por nós mesmos, ao morar em uma cidade muito pequena (South Beach) aprendemos outras escalas, tempos e distâncias. Mas também moramos em uma grande cidade, Los Angeles, onde a proximidade com a produção local, as novas formas de economia e trabalho e a apreciação ao alimento eram valorizados… Assim, o exercício e as trocas eram constantes.
Também morar dentro do museu, no Inhotim, nos ensinou muito sobre autonomia, isolamento, viver sem uma grande infra, saber respeitar e aproveitar o tempo das coisas.
Houve algum momento em que vocês se permitiram pausar?
Se em algum momento houve uma pausa “consciente” talvez tenha sido quando nos mudamos de Miami para Los Angeles. Saímos da costa leste rumo à oeste só com o carro, roupas e alguns móveis que tínhamos. As certezas que tínhamos eram: “pedimos demissão dos nossos empregos e queremos morar em um ambiente que nos exija agir e reagir sob valores que façam sentido para nós: reencontro com a natureza, relações e trocas feitas com novas moedas, valorização dos processos, minimalismo, uso integrado da tecnologia, simplicidade, máximo de realização cotidiana”.
Foi quando chegamos que sentimos que a pausa era inevitável. Toda essa busca exigia um novo ritmo, uma nova rotina, novas listas de afazeres, novos indicadores de produtividade, qualidade e sucesso. Nesse período, a pausa assustou. E o susto logo traz aquela vontade de voltar logo para o confortável (que é o familiar, o tradicional, o de sempre), não é?
A gente se permitiu passar por esse susto, por essa crise, essa pausa da inércia profissional e pessoal, com consciência de que ela nos levaria para algum lugar. Desconhecido. Mas um outro lugar.
Hoje, a gente se permite minipausas ao longo do dia, e elas estão relacionadas aos momentos de comer. Café da manhã, almoço, merenda, janta. As refeições exigem o preparo, o durante e o depois (louça!). Isso é um tempo obrigatório na rotina (temos que nos alimentar, né?) e escolhemos ser totalmente responsáveis por ele. Assim, é um tempo que não tem como ser sobreposto a outros, e exige presença total. Essas pausas são milestones no dia, quando nos encontramos, pausamos e retornamos ao fluxo.
Existe algum trabalho/projeto com o qual vocês se sintam mais realizados?
Não especificamente. A gente compartilha de um sentimento de realização quando pequenas coisas acontecem, que parecem nos dar um sopro no ouvido dizendo: no caminho que vocês escolheram, vocês estão com intenções e dedicações no jeito certo. São momentinhos dispersos. São o que antes poderíamos ver como coincidências, sorte etc.
Às vezes, é uma visita legal de gente que admiramos, a descoberta e cultivo de novas amizades, oportunidades que aparecem, aperfeiçoamento e propriedade da rotina e das coisas que construímos…
Quem vocês citariam como suas maiores fontes de inspiração? Por que e de que maneira influenciam vocês?
Vizinhos, amigos e quem é genuíno no que faz. São nossas balizas, que nos inspiram a dar o tamanho, a escala e a importância das coisas.
O que gostariam de fazer que ainda não fizeram?
Por mais que tente e queira, a gente não consegue ter uma visão clara, rígida e desenhada do que queremos ser, ter ou fazer no futuro! Sabemos (por experiências próprias de muitas tentativas e erros) que as coisas se definem ao longo do processo, quando a mão está na massa, quando estamos entre um projeto e outro, quando os inesperados surgem e precisamos decidir baseados em incertezas.
Mas o que sempre resta e é firme, o eixo, são os valores que a gente quer estar sempre exercitando e aprendendo. São valores que, quando sentimos que estão presentes nas coisas que estamos construindo, escolhendo, nos dão aquela sensação de que os dias valem a pena. E quanto mais a gente cavuca essas oportunidades, mais aquele fio de intuição se manifesta e ajuda a costurar nosso caminho.
Então, os planos são seguir em movimento: trocando, inventando e criando sempre de forma consciente, tendo motivações relacionadas à criatividade, ao relacionamento com gente querida e interessante, à comida boa, à tecnologia bem utilizada e à conexão com o que é espontâneo e natural.
Olhando para trás, hoje vocês se veem no lugar que imaginavam estar há dez anos?
Não. 🙂