Num tempo em que as únicas luzes do lugar eram das estrelas cadentes, Ricardo Salem – até então, por profissão, explorador do mundo – chegou à Trancoso.
Após uma temporada na Índia e na Europa, voltara ao Brasil com sede tropical – e foi assim que desembarcou no sul da Bahia, onde sentiria, enfim, o sabor das origens indígenas de seu povo.
Ricardo nunca pensara em ser arquiteto. Formado em Direito, tinha o sonho de se tornar diplomata, mas, em decorrência do AI-5 e, portanto, do recrudescimento da ditadura, logo desistiria. Não queria ser representante “dos milicos”. Foi para Londres disposto a “pensar” e se divertir um pouco ao lado dos amigos – também pensantes – Caetano e Gil. Em seguida, viajou pelo Rajastão e por Goa, onde adquiriu grande parte de seu repertório e de suas referências de estilo na decoração.
Refém dos encantos da mágica Trancoso, foi nesse pedaço histórico de terra brasilis que Salem resolveu ficar, 36 anos atrás, quando nativos e biribandos se misturavam a forasteiros, cineastas, mochileiros e intelectuais bicho-grilo para fazer do lugar mais uma bandeira da irmandade mundial Flower Power dos anos 1960. Sua vida passou a ser a daquela comunidade, com a qual estabeleceria profundas amizades – que atravessaram gerações e que permanecem ainda hoje.
No início, morava de favor com amigos, de galho em galho, até que resolveu ter sua própria casa. Comprou, então, um terreno no “quadrado”, a preço de banana, e começou a erguê-la – sempre com a ajuda e o conhecimento da comunidade local. “Naquela época, já tinham a cultura da marcenaria e da palha. Faziam uma colher de pau em minutos, construíam bacias para banho, mas era tudo muito tacanho e tive a oportunidade de aprimorar e sofisticar um pouco mais as dobradiças, a projeção de luz indireta, os acabamentos da palha, dando ângulo e funcionalidade a cada etapa da construção”, diz Salem.
Em terra de cego, quem tem olho é rei! Graças a este capricho extra e ao investimento na durabilidade dos materiais, Ricardo passou a ser procurado e se tornou o “fazedor de casas” da região. “Resolvi fazer algo, primeiro, que não caísse e, depois, que aproveitasse o material local da melhor maneira possível. Foi fácil, pois tudo que já existia na arquitetura indígena me parecia, com alguns melhoramentos, coisa boa!”
Assim, pegando gosto pelo trabalho, Ricardo desenvolveu uma marcenaria natural, que não usa prego nem vidro, e investiu no aproveitamento das linhas arquitetônicas locais, replicando em seus projetos, por exemplo, medidas das portas arredondadas das igrejinhas históricas.
Ricardo fundou uma escola de arquitetura baseada em elementos brasileiros e materiais rústicos, como madeira, tijolo de adobe, chão de cimento e detalhes em palha, e transferiu todo esse conhecimento para seu atual escritório, na mesma casa em que mora – a mais charmosa de Trancoso.