Chega inevitavelmente a todos a hora em que somos chamados a justificar nossos pensamentos e palavras, nossos atos e omissões. E qual não foi minha surpresa quando, da simpática revista Amarello, surgiu essa convocação. Acabo de ser consultado sobre o falatório da arte de nosso tempo – afinal, por que precisamos de tantas teorias, bulas, contextualizações e justificativas quando lidamos com a arte? A pergunta, escusado escrever, expõe as minhas próprias entranhas profissionais, já que vivo de teorizar, receitar, contextualizar e justificar em palavras e textos o maravilhoso e complexo mundo da música clássica. Assim me resta apenas defender, para os séculos dos séculos, a minha profissão.
Começo pelo princípio: é um mito recente imaginar que a compreensão intelectual da música seja caso de nossa modernidade (ou, já que estamos no terreno apocalíptico, de nossa pós-modernidade). Umberto Eco comenta, em algum momento de seu livro sobre a estética medieval, que já por ali se verificava algo muito sintomático: ao falarem de “músico”, entendiam os medievais “o teórico, o conhecedor das regras matemáticas que governam o mundo sonoro, enquanto o executante é frequentemente apenas um escravo sem perícia e o compositor é um instintivo que não conhece as belezas inefáveis que só a teoria pode revelar”.
Talvez sejamos de outra cepa, talvez não. Mas é claro que o vício de nossa teorização tem outras matrizes. A mais significativa delas diz de sua finalidade: hoje, nossa teoria vem para explicar a obra – a arte, a música, o texto – e não, como para os medievais, para explicar o mundo. Isso é assim porque, se um dia a preocupação da oportunidade da ação do homem para a boa lógica do cosmos era o que justificava a alta conta da teoria, atualmente a fórmula se inverte: é a própria expressão individual da obra de arte, por vezes com predicados íntimos ou puramente solipsistas; é a própria expressão, ia dizendo, que deverá servir como medida para a ordem do cosmos. Teorizamos pois cremos encontrar na música respostas para o Universo, e não o contrário.
Mas há um risco, e acho que de sua percepção partiu a convocação dos editores de Amarello. Afinal, quando a música ou a arte em geral se tornam prosélitos da subjetividade, convidam a nós do público a sermos, com os criadores, meros sensacionalistas, no sentido daqueles tomados por impressões ligeiras, emoções e percepções intuídas. Ora, o leitor há de saber que, se expressar medidas íntimas não é fácil, evidentemente entendê-las é ainda mais difícil – se é que possível. Incorremos no risco do sensacionalismo quando usamos a teoria como uma muleta, falando de música por crer que os elementos objetivos para sua avaliação são falidos.
Ou, dizendo de modo mais generoso: para nossa era, a música e a arte são o transporte para um lugar especial, que podemos chamar poeticamente de “geografia das emoções”. Mas o que fazemos individualmente por aquelas searas, como nos prendemos ou somos levados para este lado e não aquele, por que paramos em dado recanto e por ali nos regozijamos, isso é matéria misteriosa, pois dali retiramos um “significado”. Entre a “emoção” e o “significado”, dois gestos íntimos, ficam as nossas fabulações, mero exercício de entender e se fazer entendido.
Sobre o que não se pode falar
por Leandro Oliveira