#43MiragemArteCultura

Miríades, miragens, metamorfoses: uma história concisa do teatro de grupo no Brasil

por Mariana Ferraz

Breve gênese do teatro de grupo no Brasil

O chamado teatro de grupo caracteriza modos de fazer associativos entre artistas e operários das artes do palco cuja prática reivindica, para além de uma condução de processos essencialmente colaborativa, a relevância da constituição de linguagens e identidades qualificadoras de uma epistemologia própria. Sobretudo, destaca-se a importância da preposição de, que articula os termos mobilizados para designar o referido fazer teatral – uma vez que um teatro (feito) por grupo não necessariamente assinala um teatro de grupo, na medida em que o exercício daquele não prescinde, apesar de também grupal, do empenho arquitetônico de entidades criadoras e colaborativas, bem como promulgadoras de narrativas que lhes sejam inerentes. 

No Brasil, a placenta de tais ressignificações reside principalmente na fundação de grupos como o Teatro de Arena (1953) – que emergiu, segundo Maria Silvia Betti, também “como alternativa para o enfrentamento de pressões econômicas que pesavam sobre a esfera de produção no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC)” –, e o Teatro Oficina (1958), uma das companhias mais longevas em atividade no país, que, sob a égide de José Celso Martinez Corrêa, conjurava, desde sua formação, a concepção de um teatro radical, ritual e multitudinário. Tanto o Arena como o Oficina, cada qual com suas particularidades de operação, despontaram enquanto arquétipos do que viria a ser o chamado teatro de grupo, especialmente pela primazia, em ambos os conjuntos, da consideração do teatro como ofício comunitário de invocação intrínseco aos debates, subjetividades e demandas políticas, econômicas e identitárias apresentadas – o que se revelava, é claro, também nos procedimentos artísticos e métodos de organização que anunciavam o estabelecimento de uma operação pertencente ao e definidora do agrupamento teatral executor, sempre em diálogo com o contexto que lhes compreendia.

Tal marco, ainda que poroso e flexível, não pressupõe que as tantas erupções artísticas precedentes – do teatro jesuítico ao teatro de revista da primeira metade do século XX – não fossem operadas por comunidades de artistas, ou que o teatro feito anteriormente não denotasse um fazer de conjunto – inferência absolutamente antagônica à gênese do empreendimento teatral. O que aqui se salienta, contudo, é a sensível transformação anunciada principalmente pelo Arena e pelo Oficina, dado que a inauguração desses espaços de experiência – pela terminologia koselleckiana – acarretaria também na conclamação de outros horizontes de expectativa, portadores de insólitos rumos, sinas, possibilidades e propósitos para um teatro firmado num impulso de operação consubstancialmente coletivo.

Augusto Boal em 1975

“Diante da desarticulação de movimentos populares, cordões de militância e organizações de luta, igualmente o fazer cênico teve de mobilizar-se pela resistência e pela sobrevivência diante das diversas medidas de cerceamento e silenciamento impostas no cenário ditatorial.”

O golpe de 64 e o postulado cultural de resistência

A conjuntura do golpe militar de 1964, que suspendeu o regime democrático brasileiro e instaurou um período de truculência, perseguição e censura, também reverberou no contexto teatral. Diante da desarticulação de movimentos populares, cordões de militância e organizações de luta, igualmente o fazer cênico teve de mobilizar-se pela resistência e pela sobrevivência diante das diversas medidas de cerceamento e silenciamento impostas no cenário ditatorial.

Do referido período, enfatiza-se a realização do show Opinião, no RJ, evento considerado a primeira resposta cultural à deflagração do golpe. No Arena, o espetáculo Arena conta Zumbi, dirigido por Augusto Boal e livremente inspirado na linguagem brechtiana, rebentou como a concretização do chamado “sistema coringa”, experimento/procedimento prestado pelo Teatro de Arena que, dois anos mais tarde, se manifestaria também em Arena conta Tiradentes. Tal centelha, dentre outras interpretações, apresentava a crença de Augusto Boal no formato como a solução para um teatro em crise estética, econômica e política. 

Como postulado cultural medular de resistência do período, a Tropicália eclodira também do entremeado de estímulos oferecidos pela encenação de O Rei da Vela, do Teatro Oficina, trabalho caracterizador dos códigos cênicos que passaram a ser, nas palavras do próprio Zé Celso, responsáveis pelo grande momento de “descolonização” da companhia. Mas se O Rei da Vela foi uma das grandes molas propulsoras para a alvorada do movimento tropicalista, bem como para a reconfiguração dos brados políticos do Oficina, foi sobretudo com Roda Viva – texto de Chico Buarque encenado no RJ em 1968 – que essa nova semântica da resistência efetivamente se confirmou: pela figura de Ben Silver, um anti-herói macunaímico, a peça rogava interações de constante provocação e zombaria quanto à plateia, afirmando-se em metáforas grotescas e signos de escárnio e profanação. Concomitantemente, Boal e o Arena realizavam a Feira Paulista de Opinião, evento que almejava dar voz aos artistas da cena que pretendiam posicionar-se acerca do panorama político da época.

Com a imposição do AI-5, em dezembro de 1968, o terror repressivo e a censura passaram a ser cometidos com ainda mais vigor. O Teatro de Arena, o Teatro Oficina e o Opinião, que se vinham plasmando como importantes referências de inovação e combate ao longo da década de sessenta foram, então, constrangidos a um estado de grave retraimento e reclusão – minimamente matizado pelo advento das vertentes contraculturais disseminadas a partir dos EUA, bem como pela ocorrência dos movimentos de Maio de 1968, em Paris.

Se bem Augusto Boal apresentou seu último trabalho junto ao Arena em 1971, antes de sua prisão, tortura e exílio – Teatro Jornal – 1ª edição, que veio a ser um dos principais laboratórios para a composição do chamado Teatro do Oprimido –, células de rebeldia e ineditismo resplandeciam em diversas outras regiões do país naquele então. Do contexto, destacam-se as montagens de Macbeth segundo Ariman, na Bahia, em 1970; bem como A casa de Bernarda Alba e Tito Andrônico, de José Possi Netto, em 1973, e as de Língua de Fogo e Decamerão, de Luiz Marfuz, em seguida. Em Manaus, evidenciou-se a condução de Márcio de Souza, a partir de 1974, da encenação de A Paixão de Ajuricaba – que antecedeu outras três que também exaltavam temas indígenas e amazonenses: Dessana Dessana e A Maravilhosa História do Sapo Tarô Beque, ambas de 1975, e As Folias do Látex, de 1976.

O teatro de grupo contemporâneo

Com o prenúncio do outono da ditadura militar em 1985, tiveram início as experiências que caracterizaram a etapa contemporânea do teatro de grupo – uma vez que, com a paulatina erradicação das políticas de contenção e censura a partir do governo de João Baptista Figueiredo (1979 – 1985), bem como com o gradativo processo de redemocratização do país, “a cena teatral que até então estivera, de forma predominante, marcada pelas bandeiras de resistência democrática, começou a ganhar novos contornos”, como indicam J. Ginsburg e Rosangela Patriota.

Avultam-se, dentre os tantos traços tipificadores do teatro de grupo contemporâneo, um postulado novidadeiro, experimental e permanentemente autobiográfico por parte das companhias, sem que houvesse abdicação de sua condição estrutural de sujeito histórico. Daí, então, cintilam nomes como Gerald Thomas, Antunes Filho, Gabriel Villela e Bia Lessa – para indicar alguns encenadores –, bem como grupos tais como a Cia. do Latão (1977) e o XPTO (1984) em SP; o Tá na Rua (1980) no RJ; o Galpão (1982) em MG; o Imbuaça (1977) no SE; a Carroça de Mamulengos no CE (1982); a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis (1977) no RS; o Teatro Sim… Por que não?!!! (1984) em SC; o Ventoforte (1974) entre Buenos Aires, RJ e SP, dentre outros. 

Considerando-se a abrangência do fenômeno e o enrobustecimento da coletivização do fazer teatral, o final da década de 1980 e o transcurso da década de 1990 abarcaram o nascimento de uma série de formações colaborativas, que objetivavam “impor-se por seus projetos artísticos e modos próprios de criação compartilhada”, de acordo com Silvana Garcia, e que foram responsáveis pelo eloquente fenômeno de reinvenção operativa que vigora até o presente momento. Alguns dos agrupamentos que emergiram a partir do referido período foram Os Satyros (1989), os Parlapatões, Patifes e Paspalhões (1991), o Teatro da Vertigem (1992), a Sutil Cia. de Teatro (1993), a Cia. Ensaio Aberto (1993), o Grupo Folias d’Arte (1997), a Cia. da Revista (1997), a Cia. do Feijão (1998), a Cia. São Jorge de Variedades (1998), o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (1999) e a Cia. de Teatro Balagan (1999) em SP; a Cia. dos Atores (1987) e a Péssima Companhia (1999) no RJ; o grupo Clowns de Shakespeare (1993) no RN; o Grupo Totem (1988) em PE; o Cemitério de Automóveis (1982) – companhia criada no PR e radicada em SP a partir de 1997; e o Armazém Cia. de Teatro (1987) – criada no PR e radicada no RJ a partir de 1999.

Dos que surgiram a partir dos anos 2000, já num contexto em que o exercício teatral havia se consolidado enquanto “estética poético-militante a (en)cantar a história, as cidades e as gentes”, nas palavras de Alexandre Mate, encarnam particular importância o grupo Os Fofos Encenam (2001), o Coletivo Negro (2007), a Cia. do Tijolo (2008), a Cia. Mungunzá de Teatro (2008) e o Coletivo Legítima Defesa (2015) em SP; o Grupo Magiluth (2004) e o Coletivo Caverna (concebido em 2014 e fundado enquanto grupo em 2017) em PE; o Grupo Carmin (2007) no RN; o Ateliê de Criação Teatral (2000) no PR, e tantos mais.

É necessário mencionar, particularmente no que se refere à ampliação da articulação e à politização desses conjuntos, o advento do chamado Movimento Arte contra a Barbárie, em 1999, que se posicionava contra a mercantilização da cultura – especialmente em SP – a partir do descontentamento quanto aos critérios e prerrogativas demandados para a obtenção de recursos provenientes da Lei Federal de Incentivo à Cultura/Lei Rouanet. Foram publicados três manifestos entre 1999 e 2000, assinados por diversos artistas e operários das artes do palco, que lograram no ano de 2002 a aprovação da Lei de Fomento Municipal de SP, bem como a criação do jornal O Sarrafo – Teatro em Debate, em 2003. Tanto o Movimento Arte contra a Barbárie como outras manifestações coletivas decorrentes da referida organização – tais como a Roda de Fomento, o Movimento 27 de Março, o Movimento Teatro de Grupo e a Rede Teatro da Floresta – contribuíram com a criação, organização e tonificação de um arcabouço pelejante pela ampliação de subsídios para a cultura.

Montagem original da peça O Rei da Vela, no Teatro Oficina (1967).

“faz-se imprescindível tanto reconhecer como celebrar a contribuição dessa multiplicidade de companhias que amanheceu dos anos 1960 em diante para o estabelecimento de uma vigorosa resistência das artes, da cultura, das liberdades e da democracia brasileira.”

Epistemologias coletivas e identidade nacional: apontamentos conclusivos.

Das preponderantes características que constituem a experiência do teatro de grupo no Brasil, é mister considerar que a elaboração de epistemologias coletivas se apresenta como aspecto cardinal dessas abordagens: sobretudo, porque é no vislumbre e na edificação de premissas comuns, caracterizadoras de projetos e narrativas de cada coletivo, companhia, grupo ou núcleo teatral, que o referido fenômeno se revela em sua tipicidade e autenticidade histórica. Entretanto, como foi apresentado ao longo deste ensaio, é certo que, para além das narrativas próprias, o espírito associativo do teatro de grupo também congrega uma série de demandas e proposições que tangenciaram, circundaram e atravessaram querelas e discussões acerca da identidade nacional brasileira – disposições que seguem ressoando no tempo presente.

Tal processo histórico, como relatado, condicionou que os conjuntos que ascenderam, a partir da década de 1960, desempenhassem contundentes interações e participações nas inúmeras contendas políticas e epistêmicas que, desde então, se deram – do contexto prévio à ditadura militar aos desdobramentos da contemporaneidade. Primordialmente, porque o engendramento das tantas cartografias de si por parte desses coletivos teatrais passou a ser, impreterível e fundamentalmente, também uma revelação profunda de seu posicionamento frente aos impasses, dilemas e urgências deste “tempo que nos toca viver” – expressão de autoria da dramaturga e encenadora Cláudia Schapira, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos.

Isso posto, faz-se imprescindível tanto reconhecer como celebrar a contribuição dessa multiplicidade de companhias que amanheceu dos anos 1960 em diante para o estabelecimento de uma vigorosa resistência das artes, da cultura, das liberdades e da democracia brasileira. Em particular, porque, apesar das múltiplas medidas persecutórias e obliterantes promovidas pelo regime militar e a despeito do desamparo e da precariedade que tem assolado novamente o país também nos anos mais recentes, o fortalecimento dessa miríade de conjuntos, assentiu a consolidação de novos preceitos, meios e miragens para a realização do teatro brasileiro – garantindo, por sua adaptabilidade e eficácia metamórfica, a consumação, legitimação e preservação de suas agendas políticas e estéticas – sempre imbricadas e indissociáveis em seu cerne.