#32TravessiaCulturaLiteratura

Travessia

por Sofia Nestrovski

“O vento tange papeluchos amarrotados pela plataforma vazia”. Às vezes isso acontece — isso, uma frase onde cada palavra se encaixa. Tange, papeluchos, plataforma: a sequência as acolhe e acomoda. São palavras que ficam satisfeitas juntas, e vivem felizes, isto é, à altura de seus potenciais.

A frase vem da tradução de Tatiana Belinky para o conto “No degrau de ouro…”, da russa Tatiana Tolstaya. É uma tradução cheia de palavras contentes consigo mesmas, como “tzarina das tranças de ouro” ou “a face branca e balofa da solidão”.

A literatura tem dessas: a gente termina um livro e sai com as mãos cheias de palavras vivas. A leitura acaba e elas continuam aqui. Estremecem e inflam dentro de nós quando as encontramos em outros contextos, trazendo mistério e satisfação. Gosto de pensar que cada um leva consigo um acervo oculto de vocabulário colhido. “Apoteose”, “mutabilidade”, “noitibó” — é uma coleção doida e submersa, que só nós conhecemos, e os outros não conseguem ver.

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“Aquela travessia durou só um instantezinho enorme”, diz um trecho de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. A palavra “travessia”, na origem, era o vento que batia contrário à direção da navegação. É perigosa, “come os navios”, diz um dicionário de português do século XVIII. Pela via do latim transversus, é prima etimológica de “travessão”, o símbolo que corre no fluxo contrário das frases — criando um hiato no centro do sentido — e devora nossos caminhos retos. Guimarães Rosa: “Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! — só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada”.

Mas é possível que, às vezes, as palavras que colhemos se tornem ao mesmo tempo veladas e coletivas. Uma espécie de segredo compartilhado. Grande Sertão: Veredas e sua repetição de “travessia” é um bom exemplo disso. Quem já leu o livro talvez tenha percebido que divide com os outros leitores essa mesma sensação — essa mesma efervescência tímida e penetrante que surge quando estamos diante de uma “travessia”, mote da narrativa. Reconhecer a si mesmo e aos outros em volta dessas nove letras é como entrar para uma comunidade invisível. Um círculo de experiências segredadas e partilhadas, onde o centro é ela: sinal de infinito, redondo e redondo, “travessia”.


Texto originalmente publicado na edição Travessia

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