Fotos de acervo.
#46Tempo VividoMúsica

Conversa Polivox: Maurício Tizumba

Maurício Tizumba é um multiartista: instrumentista, cantor, compositor, ator de teatro, cinema e TV, além de empreendedor cultural. Nascido em Minas Gerais, é congadeiro e agente da cultura popular afromineira. Tizumba celebra 50 anos de carreira, arte e militância com mais de 50 produções, entre teatro, filmes e televisão, compondo uma imensa contribuição para a cultura brasileira. Está em cartaz no musical Viva o povo brasileiro, uma adaptação da obra literária de João Ubaldo Ribeiro com composições inéditas de Chico César.

Polivox — Falávamos do tema da revista, tempo vivido, e pensei sobre essa coisa de chegar aos 60+. O mercado de trabalho passa a se estreitar e as oportunidades somem. Por outro lado, você passa a ser uma bandeira. Esse corpo negro, que é um corpo alvo e que consegue virar o jogo através de seu ofício. Você atua, canta, toca, dança, empreende, participa do universo da arte e da espiritualidade. Nesses 50 anos de carreira, como você vê a sua influência no cenário de Belo Horizonte, onde é seu chão, o que você afirma até hoje, morando lá?

Tizumba — É interessante quando você fala isso, que, pra mim, quando eu comecei a trabalhar com arte e tal, tinha muita gente trabalhando, mas essas pessoas nunca dão visibilidade pra pessoas pretas, nunca deram na minha época. Hoje, graças a Deus, a gente tem a tecnologia, que mostra que tem muita gente fazendo coisas, tem muita gente da minha faixa etária, às vezes até mais velhos, fazendo coisas. Mas a visibilidade não vem como deveria vir. Eu tenho um grande apreço pelo Milton Gonçalves, por exemplo. Ele foi um camarada que entrou no mundo das novelas, foi um dos primeiros negros que eu vi dentro da televisão. E é também um grande ator. Eu não vi o mundo dele, onde ele trabalhou com teatro, mas, como empreendedor, ele deixou muita coisa também, trabalhou muito tempo como diretor. Aí estou falando de televisão, como poderia estar falando de esporte também, que os grandes nomes do esporte que a gente teve no Brasil, eles somem rapidinho, vão sendo esquecidos. O tempo vem e dão um jeito de sumir com a gente. Mas eu me neguei a sumir no espaço, mais em função da minha sobrevivência. Só sei mexer com arte, só sei trabalhar com arte, eu não sei fazer outra coisa, então eu vim à luta, sigo na luta pra fazer coisas. De repente eu não tenho a visibilidade de um artista global ou de um camarada que achou um outro caminho que rendeu a ele mais condições na vida. Eu aprendi muito cedo que o interessante é a gente ter sempre trabalho, seja ele na área que for, porque a gente tem a tendência também de achar que os pretos só vão conseguir sobreviver bem na arte. Então me dá até angústia quando escuto esse tipo de coisa. Hoje eu procuro falar muito disso pra que as pessoas não tenham que ser só artistas, mas que vislumbrem outras coisas. E essa coisa de se manter uma carreira longeva, a arte dá isso pra gente. No esporte é mais difícil, e tem outras profissões que te tiram rápido do mercado

Você começa com a música desde jovem.

Começo com a música com 15 anos, com 16 eu já estava fazendo teatro, no ginásio, na escola.

Como é a sua infância? A música acontece no seu terreiro, na sua casa?

Exatamente pelo terreiro de congado e pelo terreiro de umbanda. As músicas que eu cantava eram músicas de congado e de umbanda. Eu também tive meu período Jovem Guarda, que a gente escutava muito no rádio, às vezes assistindo televisão, televisão que, naquela época, a gente não tinha, era um objeto só mesmo pras classes mais abastadas. Então misturava as minhas músicas congadeiras com candomblé, com Jovem Guarda, com samba, com tudo que eu podia misturar.

Todas as influências.

Era uma outra época, também. Não me questionavam, e fui me transformando nesse artista que cheguei hoje, aos 65 anos, fazendo arte, trabalhando do jeito que eu quero. De dez em dez anos, essas cinco décadas [de profissão], eu consigo entender separadamente, claramente como que eu fui, tudo que eu fiz. Cada época minha teve uma história interessante à medida que fui me firmando enquanto artista. E hoje eu sei exatamente o que eu posso fazer dentro da minha carreira longeva. E eu entendo também os amigos que pararam ou desistiram, porque não é fácil. Às vezes é muito mais fácil a gente pegar um emprego ali, ter um salário mínimo mensal e garantido, que a arte nem sempre permite. Por isso eu comecei a inventar coisas.

É aí que nasce o empreendedor?

Porque, por exemplo, na semana que não tenho onde tocar, a comida vai ter que continuar entrando. Aí eu comecei a inventar coisas pra fazer. No teatro é mais difícil ainda você manter uma peça mensalmente, você ter seu salário. Então comecei a dar aula, que era coisa que eu achava que não tinha capacidade pra fazer.

Isso vem de quanto tempo para cá? Essa tomada de consciência?

No início, pensava que ia ficar famoso igual o pessoal da Jovem Guarda e ia ganhar dinheiro pra comprar uma casa pra minha mãe com 12 anos. Aí deu os 12 anos, a fama não veio, nem o dinheiro, aí eu fiz um voto: se não deu agora, com 14 anos eu consigo. Aí continuei fazendo mais dois anos. Quando a coisa não deu, eu fui trabalhar de engraxate, de outras coisas que foram aparecendo na minha vida. A partir dali eu já começo a correr atrás das minhas coisas. Acho que a minha consciência vem daí. Quando eu chego aos 18, já estou envolvido com o Movimento Negro Unificado, que chega em Belo Horizonte, e ali o discurso da gente muda, porque a gente sabe que se a gente não tinha uma casa, se não tinha uma comida digna, não era por causa da gente, era por causa de um sistema. Com 18 anos eu descubro isso, e a partir dali eu começo a trabalhar minha vida, tentando criar a possibilidade de ter coisas, de ter trabalho, porque eu sabia que os brancos não iam me dar. No final dos anos 80 eu começo a dar aula pra ter dinheiro. Eu já era um artista quando entra o axé, quando aparece o axé music na televisão, na Rede Globo. Em 1988, que dá os 100 anos da abolição, a Rede Globo pega todo o elenco, todos os artistas pretos, com Glória Maria, com todo mundo assim, e faz um evento bonito. Eu assistindo, eu via que tinha uma grande mentira naquela história, mas aquilo me dava força ao mesmo tempo, porque eram pretos que estavam ali. Por que eu achava que era uma grande mentira? Porque a Rede Globo, naquela época, não tinha representatividade relevante de artistas preto homem e preta mulher. E dali começam a aparecer essas possibilidades de núcleo.

Foram muitos movimentos políticos até acontecer essa mudança.

Eu não sou um camarada de televisão, mas a televisão é que ditava tudo, não tinha jeito. As pontas que eu fiz na televisão todo mundo via. Sabe aquelas pontas de 30 segundos? O cara me viu ali. No teatro, por exemplo, eu poderia ficar o ano todo e ninguém iria me ver. 

A TV está dentro da sala das pessoas. Quem vai sair pra ir até uma sala de teatro? Se isso não é fomentado e entendido como uma ação essencial para a sociedade, a diferença de relevância só tende a aumentar. 

Quando eu amplio a minha forma de trabalhar, por exemplo, eu mesmo passo a ser minha vitrine. Sérgio Pererê é muito engraçado, ele falava “Vamos lá, nós temos que ser o nosso próprio flyer”. Eu falava “Não, Pererê, eu sempre fui meu flyer”, mas agora dava a impressão que a minha impressora estava meio gasta, estava sem cartucho, já não estava aguentando imprimir mais. Porque chega uma hora que não dá pra você sair à noite todo dia, como quando é jovem. Eu desenvolvi também um trabalho que às vezes as pessoas me chamam só pra ir lá no lugar e dançar. Às vezes as pessoas me chamam lá só pra puxar um cortejo.

Você é um mantenedor dessa cultura afromineira, afro-ameríndia.

Eu fui nascido e criado dentro dessa história, e como artista que virei, me considero um artista vitorioso. Depois que a gente envelhece, eles tiram a gente rapidinho da cena. Na televisão sai ainda antes por causa das rugas. Hoje já me chamam pra fazer papel de avô. Hoje eu já sinto as dificuldades que a vida aos 65 dá pra gente, mas mesmo assim eu me esforço, eu pelejo na certeza. Esse último, eu achava que ia fazer um trabalhozinho de um velhinho e ficar ali, sentadinho num canto com três falas.

E no fim está suando a camisa.

A memória também já não é mais a mesma, mas com tempo e treinamento a gente chega. De agora em diante, eu tenho até que escolher o que vou fazer em função até da gente não pagar mico e continuar caminhando com dignidade.

Eu acho incrível isso, pois nesse momento você está atuando na peça Viva o povo brasileiro, na qual interpreta o Nego Leléo, e o quanto de características da personagem batem com as suas características de vida. E o quanto isso me parece um cruzo espiritual. Em algum momento as narrativas que vão chegando pra você vão fazendo sentido em relação a quem é você, então eu sinto que seu modo de enxergar o mundo e a sua vida… Ela caminha muito de acordo também com esses trabalhos, essas personagens que atravessam a sua trajetória.

Sim, tem horas que parece demais até. Com esse trabalho agora, do Viva o povo brasileiro, eu chego num momento muito bom da minha vida fazendo ele, da forma como estou fazendo, com o vigor que estou tendo pra fazer. E ele é medido. Eu não tenho mais condições de explodir ele como menino, vir correndo, virar uma cambalhota e cair lá na frente de pé. Mas envelhecer fazendo o que você gosta, aí é uma coisa de agradecer aos ancestrais, porque muita gente não tem essa possibilidade. Eu acredito que essa pode ser uma boa luta, envelhecer trabalhando. Mais do que nunca, a gente tem que batalhar contra esse padrão sem ruga, que é o mesmo que seguir ativo na sua profissão.

Hoje, quais os seus projetos que estão acontecendo ou o que estão por vir? 

Eu estou com três espetáculos. Um é o Herança, que eu fiz junto com a minha filha, Júlia Tizumba e Sérgio Pererê. É um espetáculo em que eu conto a história da minha avó, do meu tio, Pererê conta a história da avó dele, da mãe dele, e a Júlia conta a história da minha mãe, que é a vó dela. É um espetáculo muito interessante, que está sendo convidado pra participar de alguns eventos, então eu ainda vou trilhar com ele um bom tempo. Eu tenho um espetáculo já mais antigo, que é o Galanga. Eu venho trabalhando com ele desde 2012. E estou nesse espetáculo Viva o povo brasileiro, um musical inédito baseado na obra de João Ubaldo Ribeiro, no qual interpreto Nego Leléu, dirigido por André Paes Leme com trilha sonora original, composta por meu grande irmão Chico César. E ainda tem uma oficina minha permanente que acontece em Belo Horizonte.

Como é o nome da oficina?

Tambor Mineiro. A oficina nasceu pelo fato de eu ser congadeiro no cenário atual em que só se toca funk e samba. Quando cheguei em 1988 na Europa, o maracatu já estava lá quebrando tudo, o samba já estava lá quebrando tudo. Cheguei lá sozinho com meu tamborzinho e despertou muito o interesse. “O que é isso?” “É congada do Brasil.” “Congada do Brasil? “De onde é?” “De Minas Gerais.” “Na beira d’água?” “Não, distante d’água.” Porque essas coisas todas têm beira d’água, que eu chamo de tambores de beira d’água. Os tambores de beira d’água, de beira-mar, são os que vão longe, porque é mais fácil chegar nos litorais, que seja em Pernambuco, Maranhão. Cheguei lá sozinho, com um tamborzinho, em Berlim, pra tentar espalhar essa história do congado mineiro. Como essa música congadeira não entra pra música popular brasileira como entra o maracatu, como entra o axé music. Então hoje eu chego nesses lugares bem devagarinho, colocando sementinhas ali, às vezes umas germinam, outras o sol queima ou o bicho come, mas a gente vai continuar fazendo. Então tem alguns projetos de tambores em Berlim, em Munique. Está nascendo um na Áustria e outro na Suíça. 

Eu vi que você fundou uma companhia de teatro de rua, a Cia. Burlantins. O que a rua comunica, na passagem do transeunte, na relação com o morador do coreto da praça, é diferente da relação com alguém que se arrumou e foi para um teatro.

É, pega um bêbado, pega um louco, pega um cachorro. O cachorro entra na cena, aí você vai ter que contracenar com ele, o louco está lá, você vai ter que contracenar com ele. Então a Cia Burlantins nasceu em 96 pra fazer musicais de rua. E o primeiro musical que a gente fez foi O homem da gravata florida. Na montagem seguinte, a gente vai encontrar com Tim Rescala, daqui do Rio de Janeiro, que escreve pra gente uma opereta chamada O homem que sabia português. E depois ele escreve um terceiro, chamado À sombra do sucesso, tudo pra rua. A gente fez esses espetáculos todos no Parque dos Patins. É muito legal, porque a minha história com a rua vem desde a minha experiência como crooner de banda na Europa, nos anos 80. O projeto nasceu quando apareceram Regina e Marina na minha vida, duas cantoras maravilhosas, magníficas, e boas atrizes também. Regina ainda é mais atriz do que Marina. Aí a gente, com direção do Chico Pelúcio, que é do Grupo Galpão, rodamos o mundo com ela. Depois teve uma atrito, um desentendimento, a companhia ficou comigo e eu transformei ela numa companhia negra de teatro. E tenho vários projetos, como o Solo Negro, com o Hugo Germano.

O Solo Negro apresentou tanto teatro quanto música?

Dança, teatro, música, circo, tem tudo. E pra preto, só preto. Tem também o Tambor na Praça, que é patrocinado pela Unimed, vai fazer 13 anos. São tambores que a gente toca na praça, trabalha com os alunos, sempre convida um artista brasileiro pra ir lá e tocar a partir da sua trajetória artística. Além disso, tenho o Festejo do Tambor Mineiro, que é uma festa que eu faço trazendo grupos de congado de vários lugares do estado e junto com eles eu trago grupos de percussão também. A gente sempre leva um artista preto de algum lugar.

Tizumba, e sua filha? É a primeira vez que estão juntos em cena num projeto que não seja de autoria de vocês?

Está sendo interessante. É muito bom trabalhar com ela, porque o que eu vou falar, todo mundo vê: ela é muito boa de serviço, dedicada, estudiosa. Ela pegou o Tizumba só pra me homenagear, mas não precisava, porque é uma menina muito trabalhadora e acredito que ela vai envelhecer bem. Por quê? Além dela pegar o trabalho da forma que eu trabalho, por exemplo, ela direcionou esse estudo do teatro negro, essas coisas todas de negritude pra academia, então ela entrou pra academia levando isso. Ela fez mestrado em teatro negro, está fazendo doutorado em teatro negro. Ela continua, ela insiste na história. Então acredito que ela vai envelhecer bem também.

É lindo de ver, e tirando do romantismo também, porque você é a ancestralidade viva dela, ela catou aqui… Porque ela poderia também querer um outro caminho, mas ela catou e cata até hoje e diz “Ele é minha referência” e tal. Ela já alçou um outro voo nessa linhagem, que é ter adentrado a universidade, e você, desde o começo da sua fala, você fala: “Olha, não é que preto tem que ser só artista, não, a gente deve estar em todos os setores de criação, de tomada de decisão, de poderes”.

Tanto é que ela já sabia disso. Quando ela fez o vestibular pra entrar pro teatro universitário, ela fez escondida de mim. Não porque eu não queria que ela fizesse, mas é que a gente sabe da dificuldade que é pra se manter artista. Então tem dores. A dor em mim é a de sempre, mas nela eu não posso suportar. Isso é texto do Leléo: a dor em mim é a de sempre, eu manjo, eu vou, mas nela, caramba, não. É um negócio meio maluco a gente querer até canalizar as pessoas. A Júlia está trilhando o caminho dela do jeito dela, independente de mim. Quando ela veio, eu já trabalhava com a Sarau desde 2005. Quando ela veio fazer o teste pra Sarau, há seis anos, ela veio fazer um teste e eu só fiquei sabendo depois. Ela não usava ainda o nome Tizumba, ela usava o nome Dias. Deve ter uns três anos pra cá que ela começou a usar o Tizumba.

Esses passos vêm de longe.

É, esses passos vêm de longe mesmo. E eu tenho com a Júlia um amor muito grande, porque ela é filha única e aprendeu muita coisa comigo, e é isso que você falou, ela burilou muito do que ela aprendeu comigo. Eu fico até encantado às vezes com ela, pelo esforço, pela destreza de entender as coisas, pela esperteza no falar, no pensar. Eu já vejo que ela ultrapassou a minha história feita até agora. Eu tenho muito orgulho dela, da forma como ela trabalha. 

Você tem no seu ofício a voz como ferramenta. Como é essa coisa que dizem que a voz não envelhece?

Ela envelhece. Envelhece e muito. A diferença é gritante. É porque é uma coisa que está dentro da gente, e aqui a gente está sempre escutando essa mesma voz. Escuta o Jorge Ben Jor de 60 e escuta o Jorge Ben Jor de hoje. Ou escuta o Jorge Benjor de 80, você vai ver a diferença de 60 pra 80, 20 anos depois.

Acho que tem a ver com o fôlego e a quantidade de ar.

Sim, eu costumo dizer até mesmo pra esses cantores líricos, por exemplo, que têm que ter muito fôlego pra cantar na ópera, por exemplo. No final, eles têm muito estudo para levantar palato, abrir as costelas pra diafragma, eles têm muita ginástica pra isso. Mesmo assim eles envelhecem, o palato deles não vai ter força pra levantar porque envelhece, não tem jeito. Quando a gente vai ficando velho, por exemplo, uma coisa que aparece na gente muito é o vibrato. Hoje eu ando numa luta danada, vigiando, toda hora o vibrato vem.

Pra apoiar.

Pra apoiar. Eu tenho que cuidar pra usar ele o mínimo possível. Quando eu começo a falar isso é porque, caramba, eu já cheguei aos 65 anos. Acho que chego bem, feliz com o meu trabalho, com as coisas que eu já fiz. Eu estava fazendo um cálculo agora. Com essa, são 36 peças de teatro.

E shows, e filmes, e cortejos.

Filmes, são 28.

E aulas, e vivências.

É, é muita coisa.