#30IlusãoCulturaLiteratura

Colóquio dos cavaleiros

por Ana Rovati

Suponhamos que, numa de suas noites insones, em meio ao bosque ventoso e ao murmúrio de um riacho, com o corpo moído das pelejas dos dias, mas altaneiro na ânsia de espalhar seu renome para além das fronteiras do mapa e do tempo, o engenhoso Dom Quixote de la Mancha, vulgo cavaleiro da triste figura, proclamasse à escuridão que se sagrou cavaleiro para lutar pela justiça no mundo e para amar de amor cortês sua dama Dulcineia de Toboso, e que as palavras ecoadas no ar obscuro se condensassem num torvelinho faiscante, de onde partisse um relâmpago a fulminar a entrada de uma gruta ao pé da montanha, em cujo interior se encontrassem os ossos e a armadura de um cavaleiro derrotado numa batalha, mas que ferido cavalgara até a Mancha para lá morrer. O ser espectral saído do relâmpago entra na caverna, chacoalha a couraça, limpa-a dos restos mortais e a veste por completo, recompondo o cavaleiro inexistente que seguia dissolvido no ar, para então sair à procura do autor das comoventes palavras.

A armadura sem corpo caminha até o bosque e, ao encontrar o cavaleiro da triste figura, já meditabundo, com as pernas de gafanhoto de fora, a boca banguela aberta, um penico na cabeça e a lança em riste, como se esperasse um ataque do céu, se anuncia: “Fui Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez e paladino de Carlos Magno, e procuro agora pelo indivíduo cuja evocação dos ideais da cavalaria me fez retomar a vontade de estar na terra, tirando-me do autoexílio nas nuvens. Peço a vós o favor de indicar aonde devo ir para encontrar esse ser de tão distinto pensamento”.

Quixote deixa de contemplar o vazio, vira os olhos na direção de quem o chama e, depois de observar o nada através da fresta na celada do elmo, mas sem demonstrar qualquer surpresa com aquela não presença improvável, responde: “Vós, cavaleiro desencarnado, de linhagem nobre e façanhas gloriosas, buscais quem aqui está, humildemente, à vossa presença”.


“Mas não pode ser!”, replica Agilulfo um tanto exaltado. “Como que um sujeito de aspecto assim maltrapilho e indecoroso poderia ter dito as palavras tão exatas que me acordaram do sono de séculos? Como bem sei, o ser humano é instável, ambíguo, nada confiável, e tem ainda um corpo que dorme, ronca, envelhece, que bebe, tem fome e se lança em jogatinas lúbricas. A essa desordem sempre contrapus minha força de vontade, minha devoção às regras, e com isso sempre venci a modorra, a inquietude, a melancolia, mantendo a mesma lucidez e comedimento usuais. Somente um corpo asseado e vestido conforme as normas, sem defeitos, poderia agasalhar um espírito puro e perfeito que produzisse o canto que me trouxe até aqui, mas nunca vossa figura de degradação e sarro, que tantas vezes vi igual, e repreendi, em acampamentos e campos de batalha.”

“Vós vos enganais, triste cavaleiro de ar, porque partis de premissa equivocada; esqueceis que as regras, patentes no exército, graus de nobreza e códigos de boa aparência são criações perecíveis do homem, e que o espírito e o desejo de ser grande terão sempre a liberdade de ultrapassá-los e recriá-los. É uma ilusão acreditar que a vontade possa dominar a vida e suas paixões irrefreáveis; nada importa se o indivíduo esteja enclausurado num presídio, numa armadura, num posto hierárquico, em vestimentas asseadas; seu espírito desejoso poderá não só livrar-se desses grilhões, como também expor suas limitações, confrontando-as a sentimentos e ideais tanto mais altos quanto valorosos, quais o amor e a justiça, que, aqui no mundo, se acham traduzidos em poemas, novelas, ações heroicas. Eu, por exemplo, me sagrei cavaleiro para salvar donzelas de feros inimigos, para libertar cativos sob o jugo de reis bárbaros e impostores, para distribuir, enfim, justiça pela terra e alcançar a glória eterna. No tocante ao amor, seguirei amante casto e dedicado à mais formosa dama, Dulcineia de Toboso, sofrendo a delícia de sua ausência, gravada em minha medula, e gozando-a enquanto a lembro e a celebro em canções nas noites solitárias; pois, como já disse o poeta, ‘amor é um fogo oculto, uma agradável ferida, um saboroso veneno, uma doce amargura, uma deleitável doença, um jucundo suplício, uma afável morte’.”

Agilulfo jamais havia questionado suas rigorosas orientações, mas isto lhe ocorre agora ao perceber que, para Quixote, pouco importavam as ordens e os juízos de fora, já que seu sonho demasiadamente humano se tornara a única e verdadeira regra de sua existência, transformando a realidade banal em sublime – onde coexistem gigantes, hipogrifos, ninfas douradas brotando de árvores, situações patéticas ao luar –, não se sabendo mais o que é ilusório ou efetivamente real, e que, no interior desse sonho, havia uma ordem caótica, uma chama oculta a arder.

Pela primeira vez, o cavaleiro inexistente se acha totalmente desprovido de verdades e normas, e não resiste mais ao apelo da dissolução. Dentro da ausência definitiva, aquela vaga inveja que sempre sentira dos seres existentes súbito ganha nitidez, e a sua voz, agora diáfana, ecoa do além esta mensagem: “Nada fui querendo ser insígnia de comando e compostura, mas, olhando só agora para a chama fria que arde, talvez venha a compreender algum dia como me expandir nessa luz amorosa, que me confunde e me convida a existir”.