O amor está sempre por florescer
Amar é um ato de descoberta. É um sentimento progressivo e expansivo; é construção e nunca determinação. Como nota o filósofo Byung-Chul Han, o eros, por meio de sua força universal, interliga o existencial, o artístico e o político e “mantém de pé a fidelidade do porvir”. Ou seja, a existência do seu amanhã jamais pode ser predefinida sem que levemos em conta a atividade e a disposição daqueles que se relacionam. Mas, como sabemos, muito do que já foi e é definido como “amor” vem da construção social de um determinado período histórico e seu contexto. O amor romântico, por exemplo, que conhecemos tão bem, vem se impondo desde o surgimento do modo de produção capitalista e a definição da propriedade privada, em que o homem se impõe à mulher e a restringe a seu domínio como forma de assegurar a hereditariedade de seus filhos e a transferência de bens pelas gerações. Muitas formas de controle e dominação dos corpos se manifestaram ao longo da história – e, é claro, também a resistência a elas.
Desde pelo menos a segunda metade do século XX, a busca pela liberdade amorosa ganhou corpo em forma de movimentos civis políticos, de medicina, de ciência e como cultura: o movimento hippie, a contracultura, o amor livre, a pílula anticoncepcional, o feminismo, Stonewall, o sufrágio universal etc. Em meio a tantos avanços, como é que amamos hoje?
Para o filósofo transgênero Paul Preciado, as ideias e formas de viver e se relacionar que emergem na vida pública com esses eventos são responsáveis por uma crise epistemológica relativa a como a sociedade passa a perceber a diferença sexual. Novas comunidades e novos tipos de famílias, divergentes do modelo heterossexual e monogâmico, tiveram um impacto sobre a educação e o comportamento das novas gerações. As discussões sobre os corpos e os gêneros entraram na pauta do dia, abrindo um leque de possibilidades não normativas para que alguém defina sua identidade. A existência e as relações têm a porta da jaula do binarismo aberta: se conheça e seja quem você quiser ser, é possível.
Ainda que uma onda conservadora venha ganhando forma ao redor do globo em pleno ano de 2022, seja através do governo ou de uma determinada religião, seja pelo conservadorismo ou pela violência, temos avanços consolidados com relação à política pública para mulheres e cidadãos LGBTQIA+. Se, por um lado, Estados tentam barrar certas ações que poderiam ser simples, como regulamentar a educação sexual nas escolas públicas; por outro, produções artísticas e culturais continuam quebrando tabus e paradigmas: séries como Pose e Sex Education; as paradas gay ao redor do mundo; a ascensão de artistas, no Brasil, como Laerte, Pabllo Vittar, Gloria Groove, Johnny Hooker, Liniker e tantos outros.
Duas dessas produções me chamam atenção para pensar o amor nesses nossos tempos de cólera. Em 2017, Hooker e Liniker lançaram a música “Flutua”, uma história de amor gay em que o verso “ninguém vai poder nos dizer como amar” ganhou enorme projeção e foi cantado inúmeras vezes a plenos pulmões. Nos muitos vídeos da música sendo executada em performances públicas, como no festival Rock in Rio, vemos pessoas emocionadas, que tomam o verso como lição ou que o tem como gatilho para situações passadas de violência física ou psicológica, bem como pessoas que apoiam a assertividade da ideia e/ou que vivem em uma bolha em que independência da escolha amorosa não é problema. É certo que a canção marcou o final dos anos 2010, e o refrão que vem do título da música transmite-nos uma sensação de leveza em contraste com as questões colocadas pelos demais versos: fluir em meio às adversidades.
Em 2019, estreou no Netflix a série britânica Sex Education, atualmente em sua terceira temporada, que aborda de forma suave e divertida os conflitos e dúvidas sexuais de adolescentes entre 15 e 17 anos, mas também de seus pais e professores. Seu enredo não se limita a abordagens superficiais sobre sexualidade e gênero, abordando mais do que o L e o G da sigla LGBTQIA+. Por isso mesmo, dialoga de forma mais efetiva com seu público real. Em uma cena da série, a personagem Ola, negra, de cabelo curto, que usa roupas que podem ser consideradas tanto masculinas quanto femininas, busca entender sua própria identidade ao ter um relacionamento hétero sexualmente frustrado e passar a ter sonhos homoeróticos com uma colega da escola. Pesquisando na internet e conversando com o personagem Adam, ela se descobre “Pansexual”. Adam, cujo estereótipo podemos definir como o do hétero padrão, passa a se descobrir como bissexual, o que mantém em segredo para sua família e comunidade, até que começa a tratar do fato publicamente. Seu histórico inclui praticar bullying contra o personagem gay e negro Eric, um garoto nigeriano que gosta de se maquiar, usar salto, peruca etc. A terceira temporada da série foi uma das mais assistidas da plataforma de streaming, com quase 900 milhões de visualizações e aprovação de cerca de 80% da crítica.
Tais números nos levam a crer que o verso cantado por Liniker e Hooker nos trazem alguma verdade: “eles não vão vencer […] ninguém vai poder nos dizer como amar”. A presença tão constante do sexo no imaginário e no cotidiano dos adolescentes da série (e, como sabemos, na vida real), que acabam se conhecendo muito mais cedo do que os adultos com quem convivem, nos leva a refletir sobre a observação de Preciado: as gerações seguintes à chamada revolução sexual não se adaptam à normatividade, pois lidam com a essência plural do amor e do ser humano de maneira mais aberta e com muito mais informação do que as anteriores. Seria a Geração Z mais apta ao amor livre? Isso é bom ou ruim? Vai acabar com a família nuclear?
O que estudiosos da questão vêm mostrando é o contrário. A psicanalista Regina Navarro Lins, autora de mais de 10 livros sobre relações amorosas, expõe em sua obra que é saudável nos abrirmos às novas formas de amar e torná-las públicas. Disso depende a felicidade de pessoas que estão casadas mas não sentem mais desejo sexual pelo(a) parceiro(a); ou que têm desejo por mais de uma pessoa; que querem viver uma experiência sexual independente do parceiro(a) ou junto com ele(a) e mais outro(a)s; que, por medo de julgamentos, acabam deixando de lado sua vida sexual e, junto com ela, o apreço pela descoberta, pela aventura, pelas novas e velhas amizades, pela autoestima e a própria felicidade. Se os modelos familiares se ampliam e são aceitos, ao contrário de sua extinção, eles ganham força. Como dizem, é nos jovens e nas crianças que nossas esperanças são plantadas, pois é neles que vemos florescer novas primaveras.