Ucrânia, 1928. Nasce Polina Rayko, cujo nome original era Pelaheya Soldatova.
Cultura

A casa de Polina Raiko: solidão que virou monumento

A sua cidade natal, onde passou toda a vida, é Tsyuryupinsk, renomeada para Oleshky em 2015. Faz parte da província de Kherson, primeira área ocupada pela Rússia na invasão. Em 14 de abril de 2022, removeram a bandeira da Ucrânia da prefeitura de Oleshky e a substituíram por uma bandeira russa.

Esta cidade, que perdeu nomes e agora perde sua bandeira, é o território que – ainda – mantém de pé uma das casas mais importantes do solo ucraniano: a casa de Polina Rayko, monumento da cultura nacional. 

A casa é repleta de pinturas: nas paredes, tetos, portas, rodapés. Não há respiro, tudo vibra cor. Polina, autora de todas as pinceladas, começou a preencher os espaços vazios após anos de muita dor.

Ela vivia uma vida tipicamente soviética, trabalhava muito e cuidava de sua família – composta por seu marido Mykola, sua filha Olena e seu filho Sergey. Os dois homens eram alcoólatras. Sergey, de caráter mais destrutivo, violentava a casa, vendia as coisas da família e chegou a esfaquear a própria mãe. Foi preso. 

Enquanto lidava com a punição – e ausência – de seu filho caçula, sua filha sofre um acidente de carro e morre, em 1994. Um ano depois, o marido morre também. Nessa sequência de perdas, Polina se vê só. Ao seu redor, paredes vazias intensificam as perdas.

Segundo Melanie Klein, o processo de luto consiste na reorganização do mundo interno, aquele que vai sendo construído desde o início da vida, e que acaba por desabar em sua fantasia quando ocorre a perda real. A reconstrução desse mundo interior caracteriza o trabalho de luto bem sucedido.

Após quatro anos de dor e quietude, Polina recupera alguma força, e começa a pintar o interior de sua casa, reestruturando, também, seu mundo interior. Está com 69 anos e investe sua pouca pensão em tintas e pincéis. Ela recebia 74 hryvnias, algo próximo a 12 reais mensais. Teve a sabedoria de buscar um material que era barato mas suficientemente forte: uma espécie de esmalte para piso, próprio para ambientes exteriores.

Mas era dentro que as imagens se revelavam. Ela só pintava de noite, com as janelas fechadas e pouca luz elétrica. Tinha medo de ser reprimida e julgada pelos vizinhos. Durante o dia, mantinha a conduta de sempre: dedicava-se à horta, e a pequenos trabalhos para os vizinhos – onde conseguia algum dinheiro e alimentos, complementando sua pequena pensão.

Quando o sol caía, outra Polina renascia, preenchendo a noite com as luzes das cores, espontaneidade e imaginação. Não segurava pincéis desde a época da escola, mas isso não impediu que preenchesse com vigor e constância, cada centímetro de seus afrescos. Sua expressividade, monumental, a ativar processos de cura. 

Em uma jornada autobiográfica, Polina cobriu de forma minuciosa todos os nove cômodos da casa, inclusive os tetos, as portas e o fogão. Misturava realidade com visões fantásticas, aproximando suas memórias de criaturas mágicas, santos e anjos. Canalizava mitos cristãos e pagãos em uma mesma superfície. Conciliando, em seu imaginário, sua sincrética fé. 

As pinturas contêm animais de proteção, guias espirituais, símbolos bélicos, cenas de sua vida, rótulos de vodka, palavras, datas e estampas diversas. Entre as figuras, motivos floridos percorrem o plano, como trepadeiras vivas que adentram as paredes com suas raízes. 

A pintora autodidata tinha uma linguagem muito consistente, e todos os seus afrescos possuem os mesmos códigos, formando um vocabulário contínuo e impressionante. Não há espaço livre entre as faces da casa, todas as partes parecem formar um único mural, tão contínuo como o mar. 

Um ano antes do nascimento de Polina, em uma carta a Sigmund Freud, Romain Rolland cunha a frase “sentimento oceânico” para se referir a “uma sensação de eternidade”, um sentimento de “ser um com o mundo externo”. Tal sentimento nutre a energia religiosa de vários sistemas. Mesmo sem ter ido até a casa (hoje a região é alvo de bombardeios), é possível captar o sentimento oceânico que ela provoca. Para além das figuras protetoras, santificadas, há elementos que parecem correntes marítimas, mergulhando o olhar em redemoinhos. São como espirais que incitam certo transe.

O único autorretrato solitário, mostra seu corpo vestido por um uniforme militar, junto com a afirmação de um período: 1941 – 1945, quando, ainda adolescente, viveu a Grande Guerra Patriótica. Junto dos braços, asas. 

Polina não conseguiu esconder suas pinturas por muito tempo. O magnetismo de suas artes transformou a casa em atração turística. Rayko começou a receber pedidos, pintou áreas nas casas vizinhas, mas nunca cobrou por isso. No cemitério, coloriu as pedras tumulares de seus parentes. 

Por volta do ano 2000, historiadores de arte interferiram para proteger aquele patrimônio. Em 2003, realizaram um curta-metragem sobre Polina, no qual é possível conhecer, além de suas histórias, as fortes canções que acompanhavam suas narrativas pictóricas.

Ainda em 2003, deu-se início ao processo para a criação de um livro com seus trabalhos, em conjunto com o grupo criativo Kherson Centre “Totem”. Entretanto, Polina morre em 15 de Janeiro de 2004, sem conseguir ver o resultado final. Um ano depois, o trabalho é publicado como The Road to Paradise (A estrada para o paraíso), inspirada na frase que estava pintada em sua garagem, e que foi descoberta após sua morte: “como encontrar uma estrada para o paraíso?”

Após sua morte, seu neto, herdeiro direto, vende a casa rapidamente, por um valor próximo a 24 mil reais. Desde então, artistas e agentes culturais buscam proteger este patrimônio. O artista visual Vycheslay Mashnytsky cria o Fundo de Caridade Polina Rayko. Outros protetores, maioritariamente vizinhos, constroem um banheiro e colocam bancos e mesas no jardim, do qual também cuidam das flores e arbustos.

Antes da Covid-19, o dono da casa, Adrius Nemickas, comunicou que estava pronto a pôr em marcha um plano de recuperação, mas a pandemia suspendeu as atividades. E enquanto propriedade privada, não seria elegível para financiamento do estado, fazendo perdurar o penoso processo rumo à manutenção e restauro.

Até que, finalmente, o governador da região de Kherson abriu um processo para passar a casa de domínio privado para público, incentivando à criação de um museu. O dono acabou por aceitar doá-la. Estas informações, de novembro de 2020, são as últimas apuradas sobre o processo. 

Passada a fase crítica de confinamento, a região virou um dos principais alvos da invasão russa. A guerra completou três meses no dia 24 de maio, e segue ativa. Inspirados nas pinturas de Rayko, os ativistas pró-Ucrânia utilizam uma das suas pombas como símbolo de resistência. Até o presente momento, a casa também resiste.