As ambiguidades e os pequenos achados de Luiz Zerbini
A obra de Luiz Zerbini é profundamente enraizada em uma prática contemplativa e reflexiva, como observa o crítico e professor de história da arte Tiago Mesquita no livro Zerbini: Sábados, Domingos e Feriados. Sendo assim, parece natural que, desde 2013, nos períodos em que desfruta de férias, o artista venha explorando paisagens como um exercício lúdico de pintura. Fazendo isso já há algum tempo, ainda que produzidas sob pretextos e processos diferentes, há um conjunto bastante considerável a ser visitado. Mas essas pinturas nunca foram totalmente reveladas ao público, mantendo-se reservadas aos círculos mais íntimos de Zerbini. O recém-lançado livro-catálogo da editora Cobogó muda esse cenário e, pela primeira vez, podemos nos debruçar sobre obras cuja gênese é a descontração e o registro emotivo. Fazê-lo, no fim, é analisar as madeixas da produção principal de um artista notoriamente inventivo e profícuo, algo que, para além da divulgação da extensão de um corpo de trabalho consagrado, pode ser elucidativo dos mecanismos de sua intuição.
Mesquita, organizador do livro, descreve essas produções inéditas como “objetos reflexivos que ajudam a construir um repertório de temas, imagens, sugestões compositivas e poéticas, nutrindo suas obras maiores”.
Luiz Zerbini é conhecido por desenvolver mosaicos visuais de cores vibrantes e disposições geométricas surpreendentes para pinturas, instalações e desenhos de maneira tanto figurativa quanto abstrata. No seu processo, as formas desmembram-se em traços sinuosos para evocar a vegetação tropical ou revelar ricas padronagens criadas a partir de texturas variadas.
Um dos representantes-mor da famosa Geração 80, que causou burburinho ao experimentar e abraçar as mais diversas linguagens artísticas, Zerbini já participou da Bienal Internacional de São Paulo e de tantas outras exposições importantes, além de possuir inúmeros trabalhos em coleções públicas, entre elas o Inhotim, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o Museu de Arte Moderna de São Paulo e o Itaú Cultural. Por essas e outras, é um dos principais nomes da arte contemporânea latino-americana.
Sabendo de toda essa relevância, Tiago Mesquita logo acalma os ânimos dos entendidos, preparando-os para o que vem a seguir: “Essas paisagens são atípicas na trajetória de Zerbini. São telas pequenas, produzidas rapidamente, destituídas dos complexos jogos de padrões, cores e espaços que permeiam suas pinturas recentes. São obras feitas in loco, diante do tema, em uma tentativa delicada de capturar o que é visto, sem retoques ou ajustes posteriores no estúdio. Zerbini age com rapidez, tomando decisões e resolvendo problemas com instrumentos e materiais ao seu alcance, sem precisar de planejamentos minuciosos.”
Nesse sentido, as paisagens pintadas por Zerbini durante suas viagens de férias não são meras representações visuais, sendo também manifestações orgânicas e naturais que servem como resposta às sensações produzidas pelas cercanias geográficas e afetivas da vez. As ponderações e preparações prévias são deixadas de lado, assim como os aprimoramentos posteriores. Qualquer coisa que descaracterize a proposta de leveza está fora de questão. Simples assim, o artista testa ideias e aprimora suas habilidades.
Mesmo diante das adversidades que fazem com que o retiro vire necessidade, como nos tempos turbulentos de pandemia, Zerbini encontra inspiração e vitalidade em suas paisagens, sem cair na onda catastrófica que se fazia preponderante nos noticiários e nem muito menos numas de redenção exagerada, como tantas obras sobre o período. Muito pelo contrário, essas pinturas se prontificam a amplificar a beleza da natureza, refletindo significados que se aprofundam pelas condições históricas que direta ou indiretamente moldam o mundo ao nosso redor. “A ordem que ele procurava nas vistas daquela época não era oposta à hecatombe, era um modo de viver que tinha como assombração essa morte que se avizinhava. Embora sejam vistas encantadoras, as pinturas não são nostálgicas nem idealizadas. De maneira sutil, sem tocar no assunto, parecem falar, em sua contemplação reflexiva, das condições históricas que a produziram.”
A análise presente em Sábados, Domingos e Feriados destaca como as pinturas de Zerbini capturam mais do que às vezes é esperado de paisagens pintadas, coletando em cada escolha as complexidades e as contradições da vida contemporânea. Nessas telas, elementos do cotidiano se mesclam harmoniosamente com a paisagem, criando composições que são ao mesmo tempo ordenadas e desordenadas. Com astúcia, Mesquita observa como “mesmo em telas lindas que tratam da chuva”, há uma sensação de estabilidade e firmeza, onde “os elementos ainda permanecem firmemente ancorados na estrutura da paisagem”. É como se os recortes propostos pelo artista tivessem movimentos e argumentos para chamar de seus, conduzindo os olhares e as reflexões aos mais reais e enigmáticos lugares.
Essa capacidade de equilibrar ordem e desordem, estabilidade e transformação, calmaria e agito, é uma das características mais marcantes dessas obras singelas. “Tal atenção meditativa à composição”, observa o crítico, “não busca pacificar ou homogeneizar a cena. Ainda que afinados, os elementos seguem contrastados.” Essa dialética entre ordem compositiva e os resíduos que vagam por ela deixam claro que, mesmo nos momentos de lazer e descontração, o artista não renega a sagacidade de seu olhar artístico-social, propondo e pincelando interpretações que são amplas o suficiente para que cada pessoa diante delas enxergue o que sua percepção delimita.
Como conclui Mesquita, “as pinturas são esses pequenos achados e todas as suas sugestões e ambiguidades”, convidando o espectador a contemplar não apenas horizontes, vegetações exacerbadamente verdes, raios de sol e grãos de areia, mas também as histórias e os significados que residem dentro de cada uma dessas divindades.
No pulsar da vida, descompromissos que têm muito a dizer. Nas páginas de Zerbini: Sábados, Domingos e Feriados vê-se reflexões pertinentes e maleáveis sobre a condição humana e o mundo ao nosso redor. São mais do que se captura à primeira vista: são pequenos achados, ambíguos e altamente sugestivos, que contêm o universo.