O botão de soneca convida à catástrofe: para muito além do aquecimento global
“Diariamente enfrentamos riscos de toda natureza”, escreve Nouriel Roubini em seu livro mais recente, Mega-Ameaças. “Alguns são de certo modo insignificantes. Existe a chance de errar e, ainda assim, seguir adiante como se nada tivesse acontecido. Caso eu invista US$100 em ações ordinárias, posso me dar ao luxo de perder parte ou o total da quantia. Contudo, se os riscos têm a probabilidade de causar prejuízos graves e duradouros, nós os chamamos de ameaças.”
O que, no mundo de hoje, pode causar prejuízos graves no curto e no longo prazo, constituindo essas grandes ameaças proclamadas por Roubini? As respostas não são das mais animadoras. Decerto, algumas já pipocaram na sua cabeça, por mais esperançoso que você seja. O primeiro lugar a que somos levados quando nos colocamos a pensar sobre esse tipo de coisa é, claro, o aquecimento global, que parece ter ligado uma contagem regressiva para o inevitável fim da humanidade e do planeta. E se essa última frase não foi suficientemente sinistra (deu para ouvir o som de trovão forte e a trilha sonora macabra de Bernard Hermann por aí?), aqui vai mais uma para fazer o cabelo da nuca de qualquer otimista levantar: as ameaças ambientais estão longe de ser as únicas que batem à porta. A verdade nua e crua é que uma análise fria sobre muitos aspectos do mundo contemporâneo vai levar irremediavelmente a conclusões devastadoras.
Às vezes, de tanta notícia ruim nos bombardeando, acabamos por adormecer nossas emoções quando lidamos com as muitas ameaças vigentes. Guerras não param de acontecer, calotas não param de degelar, economias não param de quebrar. No meio de tudo, a não ser que isso nos afete diretamente (como no caso, digamos, de uma pandemia), desenvolvemos uma impassibilidade. Por um lado, pode ser bom que não percamos a cabeça focando nossas energias tão somente em todo o mal que pode acontecer (se é que já não está acontecendo). Mas, por outro, fazer vista grossa também soa um tanto absurdo, pois é importante nos engajarmos em questões prementes tanto por termos algum poder de fazer algo para reverter uma situação ruim quanto para nos situar do que está acontecendo fora de nossas bolhas. Nesse contexto, Mega-Ameaças vem a calhar — ainda que seja um emaranhado de gatilhos, um verdadeiro teste àqueles que sucumbem à ansiedade quando diante de notícias alarmantes.
Nouriel Roubini é um economista conhecido por seus diagnósticos sobre crises financeiras e economia global. Nascido na Turquia, ganhou a irônica alcunha de “Dr. Apocalipse” por falar publicamente, com tons de urgência, sobre um eventual colapso imobiliário dos Estados Unidos nos anos 2000 (isso antes da crise financeira global de 2008). A história, como bem sabemos, mostrou que ele estava correto e explicitou a perversidade e a ignorância daqueles que fizeram pouco de suas previsões. “Se eu pudesse escolher meu próprio apelido”, diz ele, “Dr. Realista parece mais apurado.” Considerando que já esteve certo em seus vaticínios, devemos ficar atentos ao seu livro Mega-Ameaças. Afinal, por mais tenebrosos que sejam, tais vaticínios não são delírios infundados. Muito pelo contrário: há um arcabouço lógico e teórico por trás de cada um deles. Embora a economia seja sua grande especialidade — ele, inclusive, atuou como economista-chefe do Conselho de Assessores Econômicos sob a administração de Bill Clinton na Casa Branca —, suas preocupações não se limitam apenas a essa área. Os avisos de Roubini podem ser assustadores, mas também são perturbadoramente plausíveis.
Aqui estão algumas das grandes questões que ameaçam o mundo, comuns nas discussões de especialistas como Roubini:
Crises Financeiras: crises financeiras globais têm o potencial de causar recessões prolongadas e impactos duradouros nas economias, e não importa o quão sólida ela possa parecer. Essas crises geralmente se originam de especulação desenfreada, bolhas financeiras, endividamento excessivo e desequilíbrios comerciais. Um dos problemas provenientes e causadores de crises que mais preocupa é a estagflação (combinação pavorosa de estagnação e inflação). Com o crescimento econômico estagnado, desemprego e inflação ocorrem simultaneamente. Instituições financeiras desempenham um papel crucial nesse contexto, e a regulação financeira é vital na prevenção de crises futuras. Um exemplo notório de crise financeira global é justamente a de 2008, prevista por Nouriel Roubini e desencadeada pelo colapso da Lehman Brothers. Ela teve efeitos generalizados, incluindo uma recessão global, perda de empregos e queda dos mercados de ações.
Mudanças Climáticas: não tem como fugir do assunto: o aquecimento global causado pelas emissões de gases de efeito estufa representa uma das maiores ameaças para a humanidade. Isso resulta em eventos climáticos extremos, aumento do nível do mar, destruição de ecossistemas e ameaças à segurança alimentar. Reduzir as emissões e fazer a transição para fontes de energia limpa seria fazer o mínimo — e há quem diga que o navio da esperança já saiu do porto há tempos. A situação de Tuvalu, um pequeno país na Polinésia que corre o risco de desaparecer devido às mudanças climáticas e já se planeja para lidar com o próprio sumiço, ilustra bem o nível a que podemos chegar. Sinal dos tempos: o governo de Tuvalu anunciou que irá construir o país no metaverso, para que a população refugiada possa visitar o país quando quiser e, assim, preservar sua história.
Crescimento da Desigualdade: a crescente disparidade de renda e riqueza entre as classes sociais e os países é uma preocupação, pois pode levar a instabilidade social e política. O problema, evidentemente, não é de hoje, mas, conforme o tempo passa e pouco é resolvido, a questão vai se aprofundando e se procriando, o que, no fim, representa ameaças cada vez maiores. Políticas destinadas a reduzir a desigualdade incluem impostos progressivos, programas de bem-estar social e acesso à educação. Mas nada que é simples assim vem fácil. Um exemplo notável disso é o movimento dos “coletes amarelos” na França em 2018, um movimento espontâneo de pessoas vestindo coletes e protestando no país todo contra o aumento dos impostos sobre combustíveis e os custos de vida em geral.
Conflitos Geopolíticos: exemplos de conflitos não faltam. Você escolhe: Rússia versus Ucrânia, Palestina versus Israel, a guerra civil na Síria… E isso não só é lamentável para aqueles que estão no conflito, vivendo os horrores de uma guerra, pois os estilhaços ricocheteiam no restante do mundo. Como? Esses estilhaços atingem na forma de instabilidade regional, impacto na economia global, risco de conflito armado, refugiados e deslocamentos forçados, implicações para a segurança internacional, ameaças à cooperação internacional, e por aí vai. E a tendência é que eles continuem acontecendo, sempre com uma camada a mais de histórico e ressentimento. Toda e qualquer estabilidade econômica e social se vê prejudicada diante de tensões entre nações. Haja trabalho para a diplomacia de todos os países.
Tecnologia e Privacidade: os avanços tecnológicos trouxeram benefícios e, se usados corretamente, podem ser grandes aliados. Mas também levantaram preocupações sobre privacidade e segurança. A coleta indevida de dados, ciberespionagem e ataques cibernéticos representam ameaças à segurança nacional e à privacidade das pessoas. Não seria de se espantar que essas complicações incipientes se tornassem grandes querelas globais, originando sabe-se lá quais levantes. O escândalo de dados do Facebook-Cambridge Analytica em 2018, que recolheu informações pessoalmente identificáveis de até 87 milhões de usuários da plataforma, exemplifica como informações pessoais de milhões de usuários foram exploradas para fins políticos, destacando a importância da proteção da privacidade.
Pandemias e Saúde Global: a vulnerabilidade global a surtos de doenças é uma preocupação séria. A falta de preparação, coordenação internacional e recursos para enfrentar pandemias pode ter consequências catastróficas. A pandemia de COVID-19, que começou no final de 2019 e ainda se faz sentir, é um exemplo marcante, resultando em milhões de mortes, perturbações econômicas globais e desafios de saúde pública em todo o mundo. Especialistas afirmam que é só questão de tempo até que a próxima ocorra.
Escassez de Recursos Naturais: parece um tanto óbvio que a exploração insustentável de recursos naturais, como água, alimentos e minerais, pode levar à escassez. Mas nem o aumento de consciência sobre o consumo sustentável foi capaz de conter a exploração indevida por grandes empresas. Ou seja, aquilo que é básico para qualquer vida humana está seriamente em risco. Em algumas regiões, o problema já se faz sentir e leva, inclusive, a outras complicações. A escassez de água no Oriente Médio, especialmente no Iraque, contribuiu para tensões geopolíticas e conflitos na região.
Desemprego Tecnológico: a automação e a inteligência artificial, que também podem ser aliadas se usadas corretamente, estão transformando a economia e podem levar ao desemprego em certas indústrias. É necessário esforço significativo para requalificar trabalhadores e adaptar políticas econômicas para uma força de trabalho em mudança. A automação na indústria manufatureira é um exemplo concreto disso, levando à perda de empregos em fábricas em todo o mundo e exigindo a reinserção de trabalhadores em novas ocupações.
Essas ameaças podem variar, mas todas elas têm o potencial de impactar profundamente o mundo. No final de Mega-Ameaças, Nouriel Roubini escreve:
“Ao longo das próximas duas décadas, elas levarão a uma colisão titânica das forças econômicas, financeiras, tecnológicas, ambientais, geopolíticas, sanitárias e sociais. Todas essas ameaças são terríveis. Caso haja convergência, as consequências serão devastadoras. Resolvê-las exige um ajuste quântico para todos na Terra. Eu temo o que repousa além do próximo ponto de inflexão.
Já não há mais justificativas. Adias é capitular. O botão de soneca convida à catástrofe. As mega-ameaças estão avançando em nossa direção. Seu impacto abalará nossa vida e bagunçará a ordem global de formas até hoje jamais experimentadas. Aperte os cintos. Vai ser uma viagem atribulada em meio a uma noite tenebrosa.”
As palavras são fortes e um tanto performáticas. Mas de maneira alguma isso não quer dizer que sejam desarrazoadas. O momento é crítico, e isso vale tanto para os Drs. Apocalipse e Drs. Realistas quanto para os Drs. Otimistas. Se é que é possível acreditar num futuro auspicioso, ele só se formará a partir da mudança — e essa, convenhamos, parece distante.