Para o ateu, a bondade se tornou um conceito desconcertante e desanimador. Há uma abundância de associações paradoxalmente negativas pairando sobre uma “pessoa boa”: piedade, solenidade, fleuma, renúncia carnal, como se a bondade fosse o último recurso escolhido após termos esgotado outros caminhos mais difíceis, porém mais gratificantes. Pensemos naqueles momentos durante a nossa infância quando éramos forçados a obedecer a regras aleatórias na escola, escrever bilhetes agradecendo presentes indesejados, ou realizar serviço comunitário.
Ser “bom” hoje parece desonesto. Os grandes psicólogos da era moderna, de La Bruyère a Freud, mostram de forma convincente que não existem padrões de comportamento intrinsicamente benevolentes. O egoísmo e a agressividade são encontrados no cerne de nossa personalidade, especialmente em indivíduos que parecem querer camuflá-los com grandes manifestações de virtude. A freira, o padre da paróquia, o político abnegado; fomos treinados para detectar as intenções chulas por trás de seus atos gentis. O que aparenta ser bondade sempre inclui ou a obediência ou formas pervertidas de egoísmo (e os biógrafos se encarregarão de descobrir os detalhes sórdidos). Motivos interesseiros parecem estar por trás de todo ato aparentemente benévolo. Analisando bem a bondade, a compaixão ou a piedade, qualquer psicólogo com a cabeça no lugar logo irá se deparar com as pedras fundamentais do caráter: a inveja, a malícia e o medo. Ser otimista sobre a condição humana é ser sentimental, crédulo e bastante ingênuo.
Há ainda outro motivo para desconfiar da bondade, girando em torno de dúvidas insolúveis sobre o que exatamente o conceito de bondade engloba. Após séculos de certeza dogmática, vivemos agora uma era de dúvidas militantes sobre reivindicações éticas. Ninguém parece conseguir enfrentar as “provas” paracientíficas que demandamos deles – assim sugestões foram rebaixadas de status, de verdades objetivas a meros preconceitos. As facções sensíveis e liberais da sociedade reconhecem todos os julgamentos como sendo cultural ou contextualmente específicos, e portanto incapazes de serem elevados ao ranking de verdades de ordem geral.
O pavor do antigo moralismo excluiu qualquer diálogo sobre a moralidade da esfera pública. Quem ousa sugerir que nossos vizinhos possam ser julgados no imenso âmbito chamado “vida privada”? Ao fugir do dogmatismo, ficamos paralisados pelo medo dos perigos das convicções morais. O espírito democrático gerou um ceticismo a respeito da autoridade e da hierarquia em todos os âmbitos. Julgamentos sobre os valores estremecem diante do questionamento ensandecido: quem é você para me dizer como viver minha vida? Aqueles que dizem poder responder são ridicularizados em um tom de voz adotado por adolescentes quando respondem atravessadamente aos pais. Na arena política, não há maneira mais rápida de insultar a oposição se não a acusando de tentar superar o obstáculo impossível de melhorar a base ética da sociedade. Seguramente acreditam naquele mais detestável dos conceitos na política moderna secular: o estado paternalista.
Conhecemos intimamente nossos desejos de ser feliz, bem-sucedido e rico; soaria estranho e repugnantemente presunçoso confessar qualquer equivalente vontade de ser “bom”.
Há um argumento conhecido, para o qual o século XX oferece abundantes provas, que diz que, uma vez que Deus morreu, tudo é possível.
A tese gira em torno de, por um lado, questões de conhecimento, e por outro, motivação. Duvida de que possamos saber o que é certo e o que é errado sem a orientação de Deus. E pergunta se – mesmo que alcançarmos certos princípios – nos sentiremos motivados para honrar esses princípios sem o receio de consequências externas, como o paraíso e o inferno.
Tais questionamentos até oferecem uma lógica superficial, mas são mais vulneráveis do que imaginamos em primeira instância. Dizer que, sem Deus, devemos renunciar a ideia do bem e do mal revela uma dívida ao pensamento religioso que o argumento diz questionar – apenas se acreditarmos que Deus existiu e, portanto, que as fundações da moralidade eram essencialmente supernaturais – só assim o reconhecimento da não-existência de Deus nos forçaria a renunciar aos princípios morais.
Supondo, de início, que foram, é claro, os seres humanos que inventaram Deus, então a linha deste pensamento se despende rapidamente em tautologia. Afinal, por que tudo deve se tornar possível apenas porque humanos reconheceram que eram autores das regras que antes atribuíam a seres supernaturais?
Os códigos religiosos, morais, só existem porque nos foram presenteados por Deus. Porém, para os secularistas, as origens da ética devem ser descritas nos termos mais prosaicos, cautelosos e pragmáticos, os quais, mesmo faltando grandeza, pelo menos soam convincentes aos cínicos mais ferrenhos. Os códigos existem porque os inventamos – e o fizemos em resposta a um dos problemas mais perigosos da existência social: a agressão do homem contra o homem. Morais religiosos foram criados como tentativas de controlar nossa tendência à violência, vingança, ódio, rivalidade, preconceito e infidelidade – que destruiriam a sociedade sem algum controle.
A resposta aos maquiavélicos, que se deleitam em descrever nosso egotismo insaciável, é portanto equivocada. É claro que somos motivados pelo nosso próprio interesse, mas esse interesse necessariamente inclui a nossa comunidade. O que for que individualistas tentem propor, o capitalismo efetivamente não se sustenta sem uma ética forte. O auto-interesse, pois, nos leva a entender os benefícios de agir de maneira bondosa, assim como a sensação única de amenizar a dor do outro, que faz qualquer prazer puramente egoísta empalidecer e se tornar insignificante. (Sempre houve um legado filosófico perverso que diz que um comportamento só deve ser considerado “bom” se a pessoa que o faz não deriva nenhuma satisfação da ação – uma fala tão absurda que não enxerga nenhuma diferença no valor moral entre as ações de um criminoso e de alguém que presta ajuda humanitária, porque ambos tem “motivações” egoístas em seus atos).
O código moral judaico-cristão foi desenhado para fomentar o que nós hoje chamamos de “bons relacionamentos”. Nós não necessária e conscientemente queremos nos tornar bons, mas entendemos bem por que queremos melhorar nossa habilidade de criar laços harmoniosos com nossos filhos, pais, parceiros, colegas e concidadãos – normalmente após termos saboreado a amargura de não o fazer antes de atingir a maturidade.
Nossos códigos religiosos servem de alerta, um alerta que projetamos aos céus e que reflete de volta à Terra através de formas majestosas e desencarnadas. Fortes injunções para sermos simpáticos, pacientes e justos são apenas reflexões daquilo que sabemos que fragmentaria e destruiria nossa sociedade. Essas injunções são tão vitais que por muito tempo não ousávamos admitir que havíamos as formulado, antes que isso desse espaço ao questionamento e à irreverência. Fingimos que a moralidade veio de outra fonte para poder protegê-la de nossa própria prevaricação e fragilidade.
Os que defendem a neutralidade liberal e os críticos do estado paternalista por vezes reagem à ideia de tal sociedade com pavor, apontando como isto iria lesar o mais fundamental dos bens políticos: a liberdade. Durante séculos, o mundo tinha a liberdade em reverência máxima, com razão. Quando governos monarcas exigiam a obediência cega à sua autoridade corrupta, e quando indivíduos que não obedeciam eram achacados por forças equivocadas, repressivas, religiosas e tradicionais, não poderia haver prioridade mais essencial para teóricos políticos do que questionar o poder e rotular a autoridade como inerentemente perigosa, e desafiar tentativas de ditar o comportamento ético de cima para baixo.
Mas devemos nos perguntar se a ideia da liberdade ainda sempre merece a reverência que estamos preparados a lhe dar; se na verdade a palavra não é uma anomalia histórica cujas nuances devemos aprender a interpretar e adaptar às nossas circunstâncias individuais. Questionemos se para sociedades desenvolvidas uma falta de liberdade é ainda o principal problema da vivência comunal. No caos do mercado livre liberal, não nos falta tanta liberdade quanto a chance de usá-la bem. Nos falta orientação, autoconhecimento, autocontrole, direção. Ter toda a liberdade de arruinar sua vida em paz não é uma liberdade que valha a pena idolatrar. Libertários sugerem que conselhos externos de como se comportar devem sempre ser indesejados por atravancar nossos próprios planos bem elaborados. A voz externa é – neste caso – uma voz inerentemente intrusa, indesejada, que impede as deliberações racionais e maduras de agentes livres.
Porém, ao contrário daquela imagem inatingível dos adultos contidos e razoáveis que políticos liberais têm por ser, a grande maioria de nós ainda não passa de um bando de crianças perturbadas que devem sim ouvir os conselhos de um pai sábio. Em muitas situações, desejamos ser aconselhados para nos comportarmos como almejamos, mas ainda não conseguimos, sob a pressão de nosso trabalho e a claustrofobia de nossos relacionamentos. Queremos que outras pessoas nos ajudem a manter o foco nos compromissos que assumimos, os quais às vezes perdemos de vista. A presença do outro, assim como hóspedes, pode nos acanhar de ceder à raiva, ao narcisismo, ao sadismo, à inveja, à indolência ou ao desespero.
A liberdade que faz jus às suas ilustres associações não deve significar a liberdade da autodestruição. Deve ser compatível com ser aconselhado e orientado, e até, em raras instâncias, restrito – e assim nos ajudar a nos tornarmos aqueles que aspiramos ser.