Charles White. Nobody Knows My Name #2
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Imaginação radical negra: um fruto-mistério

“Find your self, then kill it”
Amiri Baraka 

A imaginação radical negra é a habilidade experimental que permite a pessoas melanizadas a destreza para inaugurar mundos e alcançar futuros através de manifestações do agora. Fio de conduta por onde borbulhou, pela primeira vez, o olho d’água da humanidade, sua capacidade infinita tem por costume alterar destinos e reinterpretar códigos existenciais. Por carregar atributos daquilo que é sempiterno, essa força esfíngica se espraia no negrume do universo como uma espécie de viço ultra-dinâmico que tem por desejo nos orientar ao retorno, à condição preexistente, à mônada. A imaginação radical negra nos quer Vazio Vivo!

O surrealismo, negro e martinicano, de Suzanne Cesaire, apresenta o Maravilhoso, a esfera imaginal nos conduzindo ao além:

E este é o domínio do estranho, do maravilhoso e do fantástico, um domínio desprezado por pessoas de certas inclinações. Eis a imagem liberta, deslumbrante e bela, com uma beleza que não poderia ser mais inesperada e avassaladora. Aqui estão o poeta, o pintor e o artista, presidindo as metamorfoses e as inversões do mundo sob o signo da alucinação e da loucura… o sentido mais pleno espontâneo e natural. Aqui, finalmente, está a verdadeira comunhão e o verdadeiro conhecimento, o acaso dominado e reconhecido, o mistério, agora amigo e útil.

A imaginação radical negra nos quer matéria incriada, nos protege em opacidades e sabe que a tudo podemos gerar. Rompe com a lógica e a razão dominantes do pensamento ocidental, e acessa criptografias naturais de realidades fabulosas que hibridizam os mundos visível e invisível.

Pintei o Eden de Preto, 2020. Maxwell Alexandre

As filosofias Congo-Bantu, reinterpretadas por Tiganá Santana, invocam a senciência de línguas ancestrais:

“Wa i mona”, “ouvir é ver!” Deixar o que se vê de lado é sentir de outras formas – pela audição, pelo tato, por outros sentidos. 

Este é um convite para perdermos as imagens coloniais que carregamos conosco, um chamado para adentrarmos no domínio do que é bizarro, superabundante e sensorial. A imaginação radical negra sugere que devemos tatear o escuro, nos incita a reconhecer outras angulações e caminhos. Ela nos diz que devemos ser escuridão inteira, o cume da noite, a morada da sublime miríade onírica de Dinknesh – a maravilhosa. 

O poeta Amiri Baraka, ao desenhar as palavras que abrem este despretensioso escrito, nos alerta que a libertação da experiência imaginativa primeiro se dá no encontro com nosso próprio Eu, e depois com a explosão dele. Baraka nos diz que precisamos então esquecer aquilo que nos molda em colonialidades para flutuar no absurdo do que ainda não foi prefigurado, a audácia de sonhar belezas impensadas.

The Seated I/The Seated III. 2019. Wangechi Mutu

Em suas reimaginações intencionais da experiência africana, a artista Wangechi Mutu profecia: 

‘Iniciei uma crítica contínua e uma vandalização intelectual real daquelas imagens, que estavam me violando, tornando-me invisível.’

Mutu nos alerta que será preciso ostentar arrojo e determinação na busca por universos insondáveis. Incendiar uma ordem não é algo que pareça fácil de realizar. Por isso é preciso estar aberto para acolher o espanto que sentimos diante da vida, e ter saúde suficiente para elaborar continuidades através de uma semeadura/colheita ancestral. Essa proposição é radical em sua essência justamente porque tensiona o que determinado está.  

O historiador Robin Kelley nos provoca em fissuras ao nos alertar sobre a importância de pensar o impensado:

​​“Sem novas visões, não sabemos o que construir, apenas o que derrubar. Não apenas ficamos confusos, sem leme e cínicos, mas esquecemos que fazer uma revolução não é uma série de manobras e táticas inteligentes, mas um processo que pode e deve nos transformar.” 

Arthur Bispo Rosário e um de seus mantos, na Colônia Juliano Moreira, em 1989 (Foto: Lucio Marreiro)

Alforriar a nossa capacidade imaginativa é uma alternativa a escravidão mental a que estamos acometidos. Organizar a cabeça, limpar os espaços do pensamento, encorajar os sonhos, dançar com espíritos, esses são elementos essenciais na busca pela libertação da percepção. Nestes casos, recomenda-se a fuga de tudo aquilo que nos mantém inerte, a distância daquilo que nos faz pensar em uma única forma para as coisas, um único trilho para o tempo, uma única encruzilhada para a vida. 

A imaginação radical negra nos presenteia com o desassossego, ebó de fruto-mistério que emana do espírito e se configura como uma poderosa ferramenta de libertação e avanço, uma inquietação, bela e febril, que a todo tempo nos convida a serpentear pelos abismos do espaço-tempo. 

Pois como bem nos disse Malcolm X:

‘(…) Em frente a liberdade, o corpo negro vai improvisar, fazer nascer mundos dentro de si. E é somente isso que todos queremos…” 

Sun Ra. Foto de Alton Abraham

Nessa espiral, penso que seja saudável desconfiar de sonhos pequenos, destituídos de desejos coletivos. Por isso é crucial cuidar da verve, nutri-la, repousa-la em alumbramentos. Flutuar os corpos, fisico e etereo, como se toda a extensão da pele fosse revestida por olhos terrilmente negros. Enxergar o mundo com os pés, as mãos, os pelos e a cabeça. 

É possível! 

Alcançar o invisível, acessar dimensões outras, e explodir o próprio Eu. Viajar intramundos feito Sun Ra em busca de Saturno, ser fruto da placenta de Amma feito os Dogon no início da existência, ter os furiosos cabelos brancos de Storm Ororo em meio ao caos, negociar sentidos e facilitar a construção de novos horizontes como Luiza Mahin e Abdias fizeram, recriar símbolos e sensibilidades como Cruz & Sousa poetizou, provar da culinária antigravitacional Dagara feito Malidoma Somé, e ritualisticamente, viver no mundo feito Carolina Maria de Jesus: cosendo vestidos com retalhos de céu.