Arte de Alvaro Seixas, capa da Amarello Erótica.
#48EróticaCulturaSociedade

Cosmologias bucoanais: narrativas nanopolíticas

E num segundo momento veio a boca. O que era só uma clivagem se expandiu de uma ponta a outra do corpo, esgarçando a bolsa em um tubo. E, ainda assim, chegando depois, e pela outra extremidade, é ela quem nomeia nossa categoria no reino animal, deuterostômios — a segunda boca. A criação nomeada por seu estágio segundo. Se no início era também o verbo, ele não está tão ligado à boca quanto ao cu. Este, sim, a invaginação primordial do corpo humano. A rachadura que, de início indeterminada, remonta a ancestrais de quinhentos e quarenta milhões de anos. Do buraco milenar, autoerodido, constrói-se um corte radial, e com ele o paradoxo: definido pelo tubo, o centro interior embrionário é um canal de passagem a tudo o que lhe é exterior. O dentro é um processamento do fora e, a tomar pela noção de corpo, dentro e fora continuarão sempre a ser processamentos provisórios.

Daquela clivagem anal que boia no útero, o corpo desenvolve-se em um tubo gástrico enrolado por pele. A lógica do cu se dissemina por todo o tecido poroso, e sua dupla capacidade, de absorção e expurgo, multiplica a operação já infinita do paradoxo do dentro-fora. Oco e maleável, o tubo central pede uma sustentação mais firme, e, assim, acompanhando seu percurso, desenvolve-se a espinha dorsal. Ao redor dela, capilares nervosos se conectam, garantindo que aquele corpo consiga responder sensorialmente ao ambiente. Esse mecanismo consolida-nos no reino animal, sob a ameaça de que qualquer ruptura mais séria poderia levar-nos ao dito estado vegetativo.

Os sistemas ósseo e nervoso assistem o tubo paradoxal, e junto a eles vários aparelhos são incumbidos de auxiliar o processo de alimentação. Desenvolve-se uma série de filtros e distribuidores de energia; crescem-nos os membros que nos tornam perspicazes na fuga, bons de festa, de caça e de colheita; o corpo se infla de carne e sangue, às vezes de leite, às vezes de água e sempre de gases. Ele carrega, ainda, seus códigos de vida que são constantemente reatualizados. Aquela pequena clivagem inaugural que prepara o corpo ao expurgo, como a cloaca que nasce antes do ovo e da galinha, está agora protegida entre dois montes de carne estruturados pelos ísquios.

Ao bom funcionamento maquínico de todo esse sistema corporal vão dar o nome de “saúde”, ao passo que às suas disrupções chamarão de crime, doença, difamação, blasfêmia ou arte.

Seu funcionamento complexo e suas curiosidades internalizadas geram mapas dos mais diversos sobre o corpo humano, cada qual imbuindo este de narrativas fantásticas que, ao final, não elucidam mais do que constatam suas possibilidades de invenção. Esses mapas orientam relações de produção entre órgãos, forjam subjeção entre diferentes anatomias e atestam narrativas cuja coerência inventiva cria e persevera crenças — tanto aquelas advindas da fé na ciência quanto as advindas da ciência da fé. A força de vida do que é erótico confronta-se com o semiótico. Quanto mais um mapa é assimilado e reiterado, maior é a sua capacidade de determinar funcionamentos como norma. Foi assim, por exemplo, que prevaleceu até o século XVIII a percepção do humano como matricialmente dotado de um sexo único. Sob as lógicas então vigentes, o corpo era por definição masculino, porém, aquém ao modelo pleno, estabilizava-se uma outra versão, subdesenvolvida, dotada de órgãos genitais internalizados. Ainda sem nome, a vagina era percebida como uma anatomia negativa do pênis, e o útero, como um saco sem testículos — que, por sua vez, nomeavam também as duas gônadas que se elevavam à proximidade do umbigo. É só no século XVII que a incomensurabilidade dessa narrativa isomórfica do sexo dá lugar ao duplo sexo e à sua diferenciação linguística. É quando os ovários ganham nome próprio, quando se nomeia a vagina e mesmo quando mapas anatômicos diferenciados são construídos para o esqueleto e o sistema nervoso de cada matriz sexual, conforme o sexologista Thomas Laqueur. A nova invenção da mulher, agora em uma matriz anatômica díspar da masculina, acontece concomitantemente ao sumiço das inscrições de orgasmo feminino nos laudos médicos, segundo Laqueur. O que antes era vinculado à boa capacidade reprodutiva é tolhido então como material de estudo, visto que perde sua função generativa e, ao mesmo tempo, ameaça o estatuto fixo de masculinidade. O corpo já não se define em uma linha progressiva, mas paralela, e o prazer, além de múltiplo, é estimulável.

Afastados aqueles estudos de prazer orgasmático feminino, e havendo a possibilidade de produções autológicas que, em vez de se definirem por singularidade, são comparativamente vistas como exceção à norma, o corpo, seu funcionamento e seu comportamento se vinculam a noções que sejam verificáveis, mesmo se com frágeis aparatos e calcadas primordialmente na anatomia. Seu efeito brutal já vigora de saída no performativo médico, em pleno ato de nascimento, como nos diz Judith Butler. Se ao recém-nascido é verificada a existência de uma protuberância de mais de dois centímetros na região sacral, a assertiva “é um menino!” é iterada. Nessa fala celebratória, o entendimento sexual perdura como via binária, resumida a ter-se ou não um pênis e, junto a ele, uma série de prospecções sobre como o corpo deve passar a vida e responder à existência — ou não — desse genital. Uma pseudoestabilização anatômico-binária se estabelece. E dentre os vários apagamentos que ela gera, há uma série de outros mapeamentos anteriores que caem no ostracismo, sistemas corporais que são ricos estudos de como a existência é uma invenção.

Não porque o corpo não exista ou porque existindo não funcione, mas porque seus contornos e suas atuações estão diretamente atrelados às narrativas que o sustentam. Cada mapa do corpo é primordialmente um mapeamento dos sistemas lógicos que os geram.

 “O homem é chamado pelos antigos de um mundo em miniatura, e certamente esse nome está bem aplicado, visto que o homem é composto de terra, água, ar e fogo, assim como o corpo da terra”, afirma Leonardo Da Vinci. O artista e cientista italiano reproduz um ideário muito comum, a pretensão de autonomia. Esse delírio ganha inúmeras estratégias e modelos modernos. No Renascimento, o homem é de partida uma equivalência do mundo em menor escala. Essa necessidade racional de circunscrever a existência num contorno visual e integral destitui do humano a vulnerabilidade inerente e eroticamente vigente quando, do contrário, “consentimos em não ser um”, como define Fred Moten. Sendo cada humano um mundo em si, é a própria cosmologia de mundo que acaba por ser sintetizada. O homem, esse mundo em miniatura, forja ainda uma lógica cientificista misógina, o pré-formismo, em que se cria, o sêmen contendo um pequeno homem, e o corpo alheio sendo relegado a um espaço depositório.

Sublimando o paradoxo erotizante de ter o dentro constituído de fora, que é também resultado de dentro, o homem, autonomeado modelo universal, significa seu entorno objetiva e objetualmente. É assim que a antropometria se constitui numa ferramenta de mapeamento que indexa o espaço pela escala e proporção humanas.

Se seguimos com Da Vinci, no caso do homem vitruviano, seus membros são capazes de habitar um quadrado e um círculo simultaneamente, e o umbigo é o centro radial do corpo. O homem se torna escala de si mesmo e sua referencialidade, o fundamento para se pensar ocupações de espaço propondo-se uma forma simétrica ao universo.

É o protagonismo visual que gera tanto os atlas que reduzem o corpo à sua anatomia quanto aqueles que reduzem a geografia ao seu relevo. Mas como, então, liberar a episteme corporal da circunscrição ocular? Como estabelecer uma orientação marcada pela multissensorialidade, e ainda mais integrada a uma noção de experiência que reconheça na matéria o acúmulo de sua historicidade? Uma possível restituição do erótico frente a esse mapeamento talvez se materialize se tiramos o humano — e o tempo de uma vida do humano — como medida compulsória de percepção do mundo. Uma via é a que considera a capacidade sensório-cognitiva como uma limitação e opta por se referenciar a partir de substâncias que, situadas aquém do humano, conectam-se com o entorno que nos atravessa e nos ultrapassa.

Paul B. Preciado contundentemente recupera as relações entre corpo e mundo enquanto dinâmicas de fluidos e energias de um sistema integrado e suplementar através do que nomeia de somatopolítica. Longe de operarem fluxos livres, essas dinâmicas são, desde sempre e cada vez mais, cooptadas como a base de sustentação do capitalismo. Preciado reavalia a colonização, a servidão, a exploração e o extrativismo através da farmacopornologia junkie e seu consumo insaciável de moléculas químicas. O corpo humano deixa de ser um mundo em miniatura e se evidencia como um protagonista autoproclamado que reorganiza o resto do mundo em subserviência à sua satisfação. E, como bem sabemos, o protagonista não é simplesmente qualquer humano, mas o “macho adulto branco sempre no comando”, o modelo de agente desejante, que hierarquiza não só os existentes não humanos, como todo aquele que difere de si em classe, gênero, raça e eficiência.

Sob o fluxo do desejo e da busca de satisfação do prazer, com Preciado, o atlas corporal se interpõe ao mapa geopolítico. Formam-se, assim, diagramas nos quais a circulação de açúcar no sangue europeu está diretamente conectado à produção de melaço na América Central e à violência dos engenhos de cana-de-açúcar no Brasil. É também nessa circulação molecular que o ciclo do café e o tráfico de cocaína aparecem como economias fundamentais de geração de combustível energético; os temperos, os alimentos exóticos, o ópio e todo tipo de química são percebidos em sua capacidade de energizar e mobilizar o corpo europeu. São séculos de relação entre continentes e suas políticas extrativistas a serviço de compor quimicamente o sangue que circula pelos corpos consumidores, sua libido e os fluidos de suas maquinações.

Ao traçar esse complexo diagrama projetivo do humano em sua composição e desejo pelas moléculas, Preciado chama atenção para o embate de poderes que acontece numa dimensão invisível a olho nu que não se presentifica prioritariamente no formato anatômico e superficial do corpo, mas que acontece em regiões e relações bem mais profundas, pela via da fisiologia, seus processamentos químicos e a saciação de desejos. Esse debate acerca do corpo e da produção de subjetividade pela ingestão e circulação molecular abre outra via de pensamento sobre nossas relações intra e interespécies. Em meio a sociedades tão estimuladas visualmente e organizadas nas tramas de macro e micropolíticas, surge, pois, uma outra via que complexifica os mapas semióticos e nossos sistemas lógicos, e que instaura um modo de composição nanopolítica que opera entre a força energizante e insaciável por moléculas e o imaginário de satisfação e reeducação do prazer pela via do algoritmo.

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Este texto é uma revisitação de um trecho extraído do livro Ruminações: a arte de performance entre o prazer e a resistência, publicado pela editora Circuito em 2022.