Márcio, como e por que surgiu o convite para fazer o show em homenagem aos 10 anos da revista Amarello?
Semanas depois de assistir à apresentação de Tramundo, na Casa de Francisca, em São Paulo, Tomás [Biagi Carvalho, editor da Amarello] me procurou para contar que estava desenvolvendo um trabalho audiovisual sobre Os Sertões, mais precisamente sobre “A terra”, primeira parte do livro de Euclides da Cunha. Ele comentou que havia pensado em utilizá-lo como espetáculo na comemoração de sua revista. Foi nesse momento que veio o convite para realizar a curadoria e participar da direção artística desse show, chamado A primeira chuva não molha. Acredito que o convite tenha vindo porque Tramundo também fala a respeito de um Brasil profundo, sertanejo.
Como será e do que se trata o show?
Apresentei inicialmente para Tomás alguns artistas que trabalham com essa temática e por quem tenho grande admiração. Nesse processo, surgiu a ideia de criar um show envolvendo três coletivos cariocas que dialogam muito entre si: Tramundo, Selva Lírica e Pietá. Conversando com Marcos Campello, Claudia Castelo Branco e Fred Demarca [integrantes dos grupos citados] sobre como seria o espetáculo, decidimos rever o nosso repertório, selecionar algumas canções que envolvessem o tema proposto e, a partir dessa ancoragem, começamos a estruturar um roteiro que apontasse para as várias leituras de “A terra”. Ou seja, expandimos o repertório para, à nossa maneira, falarmos de diversos aspectos que envolvem não só Belo Monte e o semiárido nordestino, mas também as múltiplas visões do que é o sertão e o povo sertanejo. Nesse processo, optamos por amalgamar os três grupos e formar uma banda de onze músicos: Zé Manoel, Lívia Nestrovski, Juliana Linhares, Ilessi, Fred Demarca, Rodrigo Maré, Claudia Castelo Branco, Fred Ferreira, Marcos Campello, Thiago Thiago de Melo e Rafael Lorga. Fizemos um entrecruzamento total, tanto de repertório quanto de músicos.
Você pode falar um pouco dos artistas que participarão do show?
De início, a escolha foi bastante intuitiva. Com o tempo, porém, percebi que acabei criando um recorte da cena musical carioca – uma cena que me atrai bastante, tanto estética quanto afetivamente. Para mim, esses artistas são o que há de mais interessante e vigoroso no Rio. Claro, muitos não consegui inserir no projeto, caso de Thiago Amud, Vovô Bebê, Luisa Lacerda, Julia Vargas, Aline Gonçalves, por conta das limitações do próprio show. Durante esse processo, fiquei um pouco ressabiado por colocar tantos cariocas para falar de sertão. Afinal, dos onze, apenas Zé Manoel e Juliana Linhares nasceram no Nordeste. Mas, nesse meio-tempo, acabei lendo Sertão, sertões: repensando contradições, reconstruindo veredas (Elefante Editora , 2019), um livro com diversos artigos que expandem a obra de Euclides. Em um dos textos, é explicado que o termo favela tal qual o conhecemos hoje surgiu por conta da Guerra de Canudos: os soldados ficaram boa parte do combate alojados no Morro da Favela, que levava esse nome por conta das faveleiras (Cnidoscolus quercifolius) que havia por lá. Ao voltarem para o Rio, aguardaram do Estado a prometida terra que ganhariam em troca de terem ido à guerra. Logicamente, a promessa não foi cumprida, e os soldados foram morar no (atual) Morro da Providência, no centro do Rio de Janeiro. Lá, a região foi apelidada de Favela. Essa informação me fez perceber a enorme ligação que há entre Canudos e o Rio de Janeiro, principalmente as favelas e periferias. O sertão é periferia, é o que está à margem, o que deve ser escondido, evitado, suprimido. Isso me fez perceber que minhas escolhas faziam todo sentido.
Qual sua relação com o tema escolhido para a edição e para o show?
Como mestiço, gay e de origem periférica, o estar à margem é algo que sempre me atravessa. A luta histórica pela terra e pelo reconhecimento de uma existência são questões que me tocam profundamente. O apagamento é algo, para mim, aviltante e asqueroso. E é disso que Os Sertões fala. Mesmo a primeira parte do livro, “A terra”, gira em torno de uma concepção absolutamente positivista, impregnada de darwinismo social. Tudo isso é algo que atinge a mim e aos meus de modo muito forte.
Você falou que não havia muitos artistas nordestinos e que isso seria uma preocupação para falar do sertão. De fato, os artistas são oriundos da canção autoral de classe média, residentes no Rio. Qual a relação deles com o tema do Brasil profundo? E, mesmo, qual a sua relação, para além do sentimento de ser periférico? Você acredita que só pode falar do sertão o sertanejo? O lugar de fala é imprescindível?
Na realidade, a história dos artistas envolvidos nesse projeto é muito diversa, e nem todos moram na Zona Sul. Seria um equívoco fazer esse tipo de simplificação. Rodrigo, por exemplo, mora no Complexo da Maré. Ilessi, até bem pouco tempo, morava em Jacarepaguá e, hoje, mora no Grajaú. Além disso, muitos deles são descendentes de nordestinos e nortistas. Seria cansativo falar aqui a respeito da ligação de cada uma dessas figuras com o universo sertanejo. Na verdade, acho que é algo extremamente pessoal e subjetivo. No meu caso, minha família é toda de Itaperuna, divisa do Rio de Janeiro com Minas Gerais. Nasci em Nova Iguaçu e morei por lá até os 20 anos. Trabalho como professor há quase 30 anos na rede estadual e sempre atuei na periferia: Parque União, Vila Isabel, Méier, Pilares, Encantado, Inhaúma, Bancários, Morro do Borel etc. Já tive alunos mortos tanto pela polícia quanto pelo tráfico. Há pouco tempo, um dia após a eleição do Bolsonaro, dois alunos LGBTs, negros, foram violentamente espancados. O genocídio está aí, promovido pelo Estado. Ontem, foi em Belo Monte, hoje é na população negra e periférica do Rio. Veja, nós estamos aqui conversando basicamente por conta de uma obra que representa a perspectiva e a voz do vencedor. Mesmo que Euclides tenha ficado atordoado com a carnificina que presenciou durante o conflito, ainda assim Os Sertões é fundamentado pelo seu olhar de ex-aluno da Escola Superior de Guerra e de jornalista d’O Estado de S. Paulo. Não estamos aqui por causa das anotações de Conselheiro ou de qualquer registro de João Abade, Pajeú, Maria Bibina, Pedrão, Manuel Quadrado e Macambira (moradores de Belo Monte). Não mesmo. Por isso a importância do lugar de fala. É indispensável ler e ouvir o outro. Dar espaço para que se tenha acesso às mais diversas narrativas, às mais diversas vozes. E, principalmente, dar espaço a quem, historicamente, sempre foi calado e invisibilizado.
O que você está fazendo especificamente no show e o que o Tomás está fazendo? Como ficou a divisão de tarefas?
Tomás é o diretor geral e divide a direção de arte comigo. Eu fiquei mais voltado para os músicos, criando, em parceria com eles, o roteiro do show, acompanhando os ensaios e supervisionando o figurino. Tomás acompanhou um pouco esse processo e está mais voltado para a parte audiovisual do projeto. Na semana passada, foi para o sertão baiano fazer as filmagens para o espetáculo.
Fala um pouco sobre a ideia do Tramundo, que, como você disse, deu origem a esse espetáculo.
Tramundo é um show inspirado na obra de Guimarães Rosa, onde tento aproximar seu universo à cultura e às religiões de matriz africana. Faço a direção e sou o letrista das canções. Hoje, penso que Tramundo foi a forma que encontrei para retomar o contato com minhas raízes e minha religiosidade e, ao meu modo, honrar meus antepassados.