Cultura

Fogo de Isabel: o dia em que São João nasceu

Junho é o mês de Santo Antônio, São João e São Pedro, comemorados pelas aconchegantes festas juninas. Era a festa mais esperada da minha infância, caracterizada pelas quadrilhas, retalhos, bigodes de carvão, peixes de papel e fogo.

A primeira vez que vi uma fogueira foi assim, em um junho frio. Lembro de ouvir alertas de perigo e histórias de queimaduras que tentavam amenizar a hipnose da chama, ou a euforia dos estalinhos, balões e rastapés. Mas o que eu mais amava na festa, depois da canjica, era o cheiro de fumaça e pólvora. Na época eu não sabia muito bem do que se tratava, mas inspirava fundo para guardar o odor na lembrança.

De acordo com a tradição católica, a fogueira faz parte da história de São João Batista, santo que dá nome aos festejos dos arraiás. Quando Maria engravidou de Jesus, sua prima Isabel estava grávida de João – ambas gestações foram anunciadas pelo mesmo anjo. Elas combinaram que, no momento do parto, acenderiam uma fogueira para avisar a chegada do filho. E foi isso que Isabel fez. 

É também com um aviso incendiário que a vida se inicia: quando o bebê coroa na saída da vagina, ele forma o círculo de fogo. A ardência avisa que está prestes a sair. Algumas mulheres conseguem perceber isso e até fazem o parto sozinhas, chegam a pegar o bebê com as próprias mãos.

Pois Isabel pariu João Batista, primeiro mártir da Igreja e o último dos profetas. Foi ele que batizou Jesus – o nome Batista vem daí. Também foi quem reconheceu o Messias, e passou a peregrinar com a notícia em mãos. Há um lindo depoimento de Luiz Antônio Simas que me ajudou a clarear a história católica – e, sobretudo, o sincretismo do Brasil: 

“Adoro São João. Nele vejo um detalhe comovente, que começa na Palestina e termina no São João virado em Xangô Menino. Como é que João Batista, primo de Jesus, um profeta iracundo, decapitado a mando de Herodes Antipas, virou na cultura popular o São João do Carneirinho? Isso é muito brasileiro. Aqui prevaleceu o João menino, filho de Isabel, primo de Jesus, aconchegando no colo o Cordeiro de Deus. O único santo comemorado no dia do nascimento, e não da morte. É linda a infantilização de João, o profeta que virou erê no cristianismo popular.” 

São João, Xangô menino
(Caetano Veloso e Gilberto Gil)

Ai, Xangô, Xangô menino
Da fogueira de São João
Quero ser sempre o menino, Xangô
Da fogueira de São João

E ao pensar no menino e na fogueira, lembrei do parto de uma grande amiga, a Ayla. Ela teve seu primeiro filho no dia 24 de maio de 2019. Optou pela via natural e humanizada. A separação dos dois corpos traz muito frio para ambos, e a quentura é o antídoto. “Parto precisa de calor – a minha parteira falava. Para parir e abortar, você come coisas que aquecem, como a canela e a pimenta. Durante a gestação fiz umas dinâmicas para entender o que seria calor e frio, pra mim. Quando decidi quais pessoas estariam comigo no parto, fiz questão de convidar uma amiga para cuidar, literalmente, do fogo.”

Assim que a bolsa estourou, ela veio até a minha casa levantar a chama. Havia lenha para muitos dias, e o fogaréu acompanhou as doze horas de trabalho de parto e seguiu sendo alimentado por uma semana ininterrupta. Quando a madeira acabou, a substituíram por uma vela grande, e outra, e outra. Durante todo o resguardo havia uma chama acesa na casa, cuidada pela mãe, pela avó e por três amigas-madrinhas. Até que, no quadragésimo dia, a parteira voltou para fechar o ventre – e a vela foi soprada.

São João menino
Luísa Malheiros, 2022
(desenho feito por uma das madrinhas, cuidadora do fogo)

“A gente gasta muita energia durante o período, ficamos muito vulneráveis e abertas. O fogo é uma companhia para a transformação. Lembro que quando eu cozinhava, durante a minha gestação, a barriga perto do fogão deixava meu útero todo contraído. Ele fica inquieto, com o calor.”

Ela disse que os outros elementos também são grandes companheiros. O ar regula a respiração, acalmando o corpo todo. A terra dá firmeza e recebe os restos do cordão, e tem a água do líquido amniótico a envolver o pequeno corpo. 

Ela tinha preparado a banheira para o parto subaquático, mas não sentiu vontade de imergir. “Eu fui testando várias posições. Até que pus o pai sentado na cama, ajoelhei no rolo de yoga e me apoiei na virilha dele. Na hora H, antes da cabeça, duas perninhas começaram a se mexer, levamos um susto. Nico nasceu de parto pélvico, um tipo que não é recomendado ser feito na água.” Segue um desenho da Ayla, que mostra a posição, naturalmente escolhida:

Santo é aquele que comprova um milagre e São João não realizou nenhum. Mas seu nascimento, em si, foi considerado “o grande milagre”. O mesmo Anjo Gabriel, que avisou Maria sobre a vinda de Jesus, fez a anunciação de João – concebido pela prima estéril, em idade avançada. Mesmo com o corpo atrasado, Isabel encarnou o próprio milagre. Como canta Zeca Veloso, “todo homem precisa de uma mãe”. Todo santo, também.

O jovem São João Batista.
Escultura em mármore, de Domenico Pieratti, artista italiano nascido em 1600.
(É, por acaso, o primeiro homem batizado com o sobrenome que carrego. Sua mãe é desconhecida).