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Minha vida é uma novela

por Hermés Galvão

Subestimemos de tudo um pouco da nossa quase nada pop cultura, mas jamais sejamos injustos com as nossas novelas. Esqueçamos de ontem em diante e voltemos no tempo para lembrar de como éramos felizes, e sabíamos, diante da televisão de tubo sem controle remoto. Não cometamos a injustiça de desonrar o passado de glórias do nosso mainstream áudio e visual, tão longe da ficção de hoje, tão distante da produção pós TV aberta que, urgente, devia fechar para balanço e olhar para trás – pois o amanhã é mais duvidoso do que nunca para quem não soube se reinventar. No país onde só tem valido a pena ver de novo tudo que é velho, e o nosso velho era moderno demais para a época, é bom lembrar que era uma vez uma história com roteiro original e enredo sempre magistral: qualquer tema discutido, elenco escalado, tarde da noite ou censura prévia, não havia razão, enterro de ente querido ou discussão com vizinho ou paquera de ocasião que nos fizesse perder um capítulo de novela. Seja ela qual fosse.

A vida e o mundo lá fora passavam na TV e a gente acompanhava, as modas e as manias, os romances que começavam como um beijo técnico e terminavam nas revistas semanais com histórias reais baseadas em fatos surreais – e nem havia foto de paparazzi para ilustrar o fato, o que deixava a história, pelo menos suas nuances, ainda mais colorida pela nossa imaginação. Ficção e realidade caminhavam lado a lado em tênue diferença, quase imperceptível de tão fiel ao fato – e era, aliás sempre foi, preciso dizer que “esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”. Mas era tudo tão verossímil, mesmo quando tudo que se queria no folhetim era morar em outro lugar ou imaginar um país menos irreal que o original.

Misturavam-se a literatura e a mitologia, folclore, fantasia, essa era a receita de sucesso mesmo quando o enredo era um fracasso. Fazia parte do show dar errado, e mesmo assim muito mais da metade do país não mudava o canal. A morte assistida era parte do show e acompanhar uma novela, por pior que fosse, era um pacto de sangue inquebrável. Afinal, faltaria assunto àqueles que não soubessem o paradeiro, o assassino, o suspeito, o amante. Amávamos e odiávamos por inteiro cada capítulo, éramos tão noveleiros quanto os franceses são cinéfilos. Nosso orgulho nacional tinha nível internacional; fomos vistos da China a Portugal, dublados e legendados, traduzidos, adorados. Criamos para sempre personagens que foram morar no eterno; foram-se os cenários, viraram eles lembranças que vagueiam na memória e no inconsciente: tornaram-se todos eles os heróis, vilões e mocinhos que mal tivemos nos livros e no cinema feito em casa.

Formamos nossa identidade cultural na televisão, aprendemos um pio de inglês ao cantar as canções dedicadas a eles, aos pares românticos e aos amores impossíveis. Desenvolvemos através deles a capacidade de imaginar como seria o futuro, mesmo que a curtíssimo prazo. E aquele “a seguir cenas do próximo capítulo” era a deixa para desenharmos a sós, antes de dormir, como seria o dia seguinte na vida paralela que vivíamos ali, diante da pequena tela, quando todo o real à volta perdia a importância e a cor. A imagem e as palavras, a cidade fictícia, o galã e a namoradinha, o Brasil de verdade num faz de conta seriado que partia corações quando o FIM estava próximo. E, logo após a cena final, cabia a nós juntarmos todos os pedaços, as tramas e os dramas para formar uma única história antes de arquivá-la para, então, recomeçar tudo na segunda-feira seguinte, no primeiro capítulo de uma nova história, quando esperanças davam lugar às lembranças. Novas trilhas, novos personagens, novos cenários – para ninguém dizer que a vida não passa na TV.