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Retóricas visuais da Memeflix brasileira

por Giselle Beiguelman

Foi-se o tempo em que a visualidade da política se concentrava nas máquinas de propaganda do Estado e em campanhas de “santinhos” impressos, fotos e vídeos dos candidatos em comícios, carregando criancinhas em favelas, tomando café em bares da periferia e inaugurando obras. Hoje estamos diante de um novo arco de produção simbólica, que inclui a tomada das telas de TV no horário nobre, infiltrações ativistas na primeira página dos jornais e muitos memes.

Poucos momentos explicitaram tão bem essa nova condição como os que antecederam a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 7 de abril de 2018. No tempo-espaço do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo (SP), onde Lula ficou por 48 horas, a foto do ex-presidente carregado pela multidão, depois de um discurso histórico de 54 minutos, viralizou. De autoria de um até então desconhecido jovem de dezoito anos, Francisco Proner, foi compartilhada incontáveis vezes no Instagram e no Facebook e estampou o noticiário de veículos tradicionais, como o The Guardian e o The New York Times, sobrepondo-se às narrativas oficiais sobre o caso. 

Nesse movimento de passagem de tela a tela, elas vão se convertendo em múltiplas derivadas e podem implicar uma ruptura com o sistema de representações vigente e seus mecanismos de organização simbólica.”

O fenômeno de recontextualização dessa imagem está longe de ser um fato isolado e responde a uma lógica de apropriações que é característica das formas como se encadeiam os jogos políticos estéticos nas redes, da esquerda à direita. Não se trata aqui de abrir uma discussão sobre a história da apropriação na arte contemporânea desde a pop art. Tampouco de explorar as práticas do sampler e do remix, que pautam a cultura eletrônica e digital desde os anos 1970, e as particularidades das estéticas dos bancos de dados, tão fulcrais no contexto da net art. O foco aqui são as imagens que saem de uma mídia para outra, da tv às interfaces das redes sociais. Nesse movimento de passagem de tela a tela, elas vão se convertendo em múltiplas derivadas e podem implicar uma ruptura com o sistema de representações vigente e seus mecanismos de organização simbólica. 

Quando essas rupturas acontecem, desestabilizam a ordenação interna dos meios de comunicação de massa, e esse é um dos traços mais interessantes da ecologia midiática atual. A invasão do triplex do Guarujá (SP) pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), ocorrida no dia 16 de abril de 2018, explicita essa relação. Na ocasião, trinta pessoas ocuparam por três horas o apartamento atribuído ao ex-presidente Lula, que o levou a ser condenado a doze anos de prisão. Mais do que funcionar como plano de tomada do apartamento, a ocupação-relâmpago do triplex foi porta-voz dos argumentos contrários à sua condenação. 

Os veículos de divulgação do protesto, contudo, não se resumiram às redes sociais, cada vez mais confinadas a bolhas, algoritmicamente dirigidas, e nas quais os grupos tendem a falar entre si e para si. O protesto invadiu a pauta dos principais noticiários da TV e teve sua mensagem estampada na primeira página dos jornais mais relevantes do país. “Se é do Lula, é nosso. Se não é, por que prendeu?” Essa era a mensagem que os manifestantes carregavam nas suas faixas e que se infiltrou nos veículos midiáticos tradicionais.

 Nesse contexto, a ação política torna-se happening e a regra do jogo passa a ser a consciência de estar “dentro” de uma futura imagem. Como assinala a pesquisadora Esther Hamburger, essas infiltrações midiáticas “ocorrem em ações políticas performáticas que antecipam, e até certo ponto provocam, a reverberação de imagens que inundam circuitos transnacionais, usualmente preenchidos por conteúdos produzidos por corporações especializadas na produção de notícias”. 

Algo que já estava enunciado com bastante força nas ações Zumbi Somos Nós (2007), do grupo Frente 3 de Fevereiro, mas que se torna socialmente transversal nas manifestações de junho de 2013. Afinal, como não lembrar que um de seus momentos mais marcantes foi a travessia da ponte Octávio Frias de Oliveira, em São Paulo, no dia 17 daquele mês? Roteiro até então incomum nos protestos, a ponte estaiada é o cenário que se entrevê ao fundo em vários programas jornalísticos da Rede Globo. Foi, por isso, o local escolhido pelos manifestantes para gritar palavras de ordem contra a emissora e pressioná-la a mudar o tom sobre os protestos contra o aumento de tarifas públicas. As declarações da jornalista Patrícia Poeta, no Jornal Nacional daquela noite, em defesa da cobertura até então realizada, inseria indiretamente os manifestantes no quadro e consumava o sentido da ponte ocupada, como imagem e dispositivo político. 

Os registros do performático desfile de moda dos estudantes secundaristas na ocupação da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), em maio de 2016, em protesto contra a corrupção na compra da merenda escolar, evidenciam, nesse contexto, uma transformação radical em curso. Ela diz respeito aos meios de ver e dar visibilidade aos conflitos e às reivindicações, sem deixar de iluminar a diversidade dos corpos e sua dissidência dos padrões normativos. 

No limite extremo desses processos, ocorre uma inversão dos procedimentos que marcaram as relações entre arte, política e mídia nos anos 1970, durante a ditadura, quando as artes politizavam as mídias esteticamente. As infiltrações em jornais feitas por Cildo Meireles (1970), Paulo Bruscky e Daniel Santiago (a partir de 1974), ou no noticiário, como fez o grupo 3nós3, na intervenção urbana Ensacamento (1979), são alguns exemplos desse tipo de artivismo. Em ações como a “Alesp Fashion Week”, dispara-se outro vetor: é a política que ganha, via mídia, dimensões estéticas. 

É verdade que a relação entre imagem e política não é nova. Central nos totalitarismos dos anos 1930, constituiu o pilar de sustentação da sociedade do espetáculo conceituada por Guy Debord. Contudo, a associação entre imagem e política agora é de outra ordem. Mais que lugar e meio de transmissão de ideias e linguagens, a imagem é o próprio campo das tensões políticas. 

É na imagem, e não a partir dela, que os embates se projetam socialmente. Na explosão de fotos, vídeos e muitos memes que desembocam rapidamente nas redes, a imagem se converte em um dos territórios de disputa mais importantes da atualidade. Bolsonaro e seus apoiadores introjetaram rapidamente essa dinâmica, um dos ingredientes mais importantes de sua receita de sucesso rumo ao Palácio do Planalto, calibrados pelas redes sociais. Que o digam os manifestantes bolsonaristas gritando “Facebook, Facebook, WhatsApp, WhatsApp!!!” na Esplanada dos Ministérios, no dia 1o de janeiro de 2019. 

Não é de agora que as redes sociais se tornaram lugares relevantes nos processos políticos, e isso está longe de ser uma exclusividade dos apoiadores do presidente Bolsonaro”

Não é de agora que as redes sociais se tornaram lugares relevantes nos processos políticos, e isso está longe de ser uma exclusividade dos apoiadores do presidente Bolsonaro. Muito se falou sobre a importância das redes sociais em movimentos como a Primavera Árabe, o 15-M espanhol e o Occupy Wall Street, que aconteceram em 2011, e as Manifestações de Junho de 2013 no Brasil. No calor da hora, chegou-se a identificar a Primavera Árabe como a primeira revolução feita pelo Twitter. Pode-se dizer que há exagero nessas colocações, mas não há exagero algum em afirmar que, sem os recursos do Facebook e do Twitter, essas manifestações não ocorreriam da forma como ocorreram. Sua capacidade de divulgação global, alcance social e disseminação está diretamente relacionada a essas redes sociais. 

Discorri sobre essas questões em outras publicações, mas enfatizo aqui que o caso da chegada de Bolsonaro à presidência desloca o eixo dessas análises. No seu espectro, como veremos, as redes sociais são o espaço primordial de construção e realização da política. Nessa perspectiva, a saudação inédita em qualquer posse presidencial, levada a cabo pela militância bolsonarista para recepcionar a imprensa, em Brasília, naquele dia, fazia jus ao estilo do novo titular do posto, Jair Messias Bolsonaro, e indicava um redirecionamento das relações entre a internet e as ruas. Nas suas redes sociais, o presidente deixa claro que elas não foram apenas meios de acesso ao poder. Mais que veículos de comunicação pessoal, as redes são seu principal canal institucional e o lugar de construção de sua imagem. Imagem que é a linguagem pela qual está sendo escrita a história oficial de seu governo. 

Com mais de 35 milhões de seguidores, distribuídos entre suas contas no Twitter, Facebook e Instagram, o 38o presidente da República é um dos principais líderes mundiais nas redes. E isso é resultado de um trabalho milimétrico e militante, labutado entre teclados, câmeras e muitas, muitas lives, nas quais ganhou força um regime visual que faz toda a diferença nas regras do jogo político que o presidente Bolsonaro protagoniza. Durante a campanha presidencial, suas imagens atravessaram os mais diversos ambientes: de gabinetes a salas de estar, passando pela cozinha, a churrasqueira da casa, o caixa automático e até seu leito na UTI quando ele esteve hospitalizado. 

Em conjunto, os registros da campanha constituem um legado ímpar de imagens precárias, por vezes fora de foco, feitas com câmeras mal posicionadas, iluminação descuidada e ângulos distorcidos. Nos vídeos, ao fundo, frequentemente apareciam, de um lado, uma menorá, o candelabro judaico que é também parte da liturgia evangélica, e, do outro, uma moringa de barro, símbolo tão singelo da cultura nacional. Sobre a mesa, objetos variados: papéis com anotações, notas fiscais, livros de e/ ou sobre o político britânico Winston Churchill, tratados antimarxistas e celulares diversos. O importante era transmitir uma certa ideia de desarrumação geral, com cara de cenário improvisado, para naturalizar a cena e ganhar ares de informalidade e espontaneidade. 

Retoma-se aí a estética amadora consolidada pela apropriação da linguagem do vídeo caseiro que explodiu com o YouTube e que surge como estratégia de aproximação do “mundo real”. Essa estética pretende se contrapor ao imaginário tecnicamente perfeito do padrão de qualidade hollywoodiano (ou da Rede Globo), pela supressão de mediações. Como se a imagem produzida fosse um decalque do real, sem nenhuma interferência dos meios que a produzem e de quem os instrumentaliza. É nessa idealizada contraposição que reside a eficácia da estética amadora.

Às vésperas do primeiro turno, o então candidato falou de casa com seus seguidores na avenida Paulista. Com sombra no rosto, contra a luz, em um vídeo gravado em pé no jardim, tentando ver as imagens que lhe mostravam em outro celular, Bolsonaro levou seus eleitores ao delírio. Ao longo de toda a campanha eleitoral, diante das (próprias) câmeras, o candidato Bolsonaro ria, ficava sério, desafiava “a mídia”, preparava o pão com leite condensado do seu café da manhã, ia ao açougue e fazia churrasco. Aparecia no barbeiro, posava com a filha, descansava no sofá e compartilhava mimos recebidos de seguidores anônimos. De camiseta esportiva, shorts, e mesmo de terno e gravata, já no posto de presidente, ele não fala com seu eleitor, ele o exprime. E, ao exprimi-lo, como mostrou o semiólogo Roland Barthes (1915–80) décadas atrás, transforma-o em um herói, convidando o eleitor a eleger-se a si próprio.

Essa frequência vibratória não se desfez com a eleição. Pelo contrário. Da vitória no primeiro turno em diante, ela só cresceu. Em um dos seus picos de audiência, Bolsonaro quebrou todos os protocolos, postando a primeira foto oficial como presidente no seu perfil pessoal no Instagram. Seguiram a postagem mais de 1 milhão de likes. Não que isso seja um acontecimento incomum. As respostas às postagens de Bolsonaro são sempre acompanhadas de vários milhares de likes e aplausos aos seus feitos.

Trata-se de um verdadeiro ritual mobilizatório, uma estratégia de comunicação intensa que mais parece uma campanha eleitoral sem-fim. Mesmo depois de a administração das redes do presidente e de seus ministros passar a ser subordinada à Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República, deixando de veicular imagens da sua intimidade doméstica para incorporar o padrão da foto oficial, mas sem perder o elã motivacional, que fundamenta sua retórica visual. 

É justamente esse elã motivacional que afasta sua retórica visual do midialivrismo. Apesar de o presidente creditar sua vitória à independência dos grandes conglomerados de comunicação, uma prerrogativa de coletivos e redes como Jornalistas Livres e Mídia Ninja, sua visualidade amadora em nada dialoga com o midialivrismo. Nas práticas como a do Mídia Ninja, por exemplo, a tônica recai em um novo cinema insurgente, como chamou Ivana Bentes, e não em uma estética amadora. Prevalece aí uma “dramaturgia do grito”, forjada no corpo a corpo com o presente, em que a câmera se torna parte “de um animal-cinético, que filma enquanto combate e foge”. Uma câmera colada à respiração de quem produz a imagem de dentro dos acontecimentos, “em regime de urgência e precariedade”. 

Foi Barthes quem primeiro definiu o campo de uma retórica das imagens em texto que data de 1964, situando sua interpretação a partir do inventário de seus conotadores (o conjunto de associações que se acrescentam ao sentido original de uma palavra). Expande-se, com base nessa compreensão, o entendimento da retórica para além do discurso verbal, permitindo que se incorporem à análise “as convenções pelas quais [o discurso] é criado nos artefatos visuais e nos processos pelos quais influenciam os espectadores”. Nessa interpretação, as imagens transcendem o seu valor estético e funcionam como elementos simbólicos constitutivos de um sistema de comunicação, possibilitando que sejam pensadas no âmbito da experiência cultural e entendidas como constructo resultante de um trabalho coletivo. 

“Como uma prática”, escreveu o filósofo Arthur C. Danto (1924–2013), “a retórica tem a função de induzir o público a tomar determinada atitude em relação ao assunto de um discurso, isto é, de fazer com que as pessoas vejam a matéria sob determinado ângulo.” E esse ângulo, no caso do presidente, é estratégico. Sua retórica visual opera como um fator compensatório, que supre tudo aquilo que sua oratória não entrega. Não espanta que tenha se tornado um protagonista na torrente de memes e projeções nas fachadas de prédios de várias cidades que marcaram a pandemia do coronavírus no Brasil. 

Imagem característica da internet, os memes são imagens feitas para serem compartilhadas. Irônicos, expressam uma cultura de consumo rápido, que adere a temas do momento. Os mais disseminados são os que trazem imagens acompanhadas de textos curtos em letras garrafais, tecnicamente chamados de image-macro. Agregadores de linguagem, constituem o que Jacques Rancière chamou de “frase-imagem”. Um formato em que o texto não funciona como complemento explicativo da imagem nem a imagem ilustra o texto, mas os dois elementos se encadeiam para produzir um terceiro sentido. 

O termo “meme” foi cunhado muito antes do advento da internet, pelo biólogo inglês Richard Dawkins, em “O gene egoísta” (1976)”

O termo “meme” foi cunhado muito antes do advento da internet, pelo biólogo inglês Richard Dawkins, em “O gene egoísta” (1976). Alguns dos atributos que ele associou aos memes, especialmente quanto à forma de propagação e ao poder de contestação, explicam a popularização do conceito. Mais citada que lida, na teoria de Dawkins o meme é uma unidade replicadora que se alastra por imitação, sempre sujeito à mutação e à mistura, e que funciona como resistência crítica. Isso porque nos dá o poder “de nos revoltarmos contra nossos criadores” e de “nos rebelar contra a tirania dos replicadores [os genes] egoístas”. 

Foi nos anos 2000 que o termo ganhou força e a compreensão que temos dele na atualidade, explodindo nas redes sociais, pelo fluxo de compartilhamento, no Twitter, no Facebook e no Instagram. Nesse contexto, os memes expandiram-se, incluindo não só o mundo pop, como também o da publicidade e o da política, instituindo outra forma de comunicação visual, desvinculada do universo evolucionista de Dawkins. Para além das piadas com celebridades, torcidas de futebol, novelas e afins, os memes transformaram-se em uma espécie de comentário à queima-roupa de todos os acontecimentos cotidianos, constituindo um noticiário paralelo, baseado em imagens. Se antigamente valia o slogan: “Aconteceu, virou Manchete”, associado à primeira revista homônima do grupo Bloch, hoje o correto seria dizer: “Aconteceu, virou meme”. 

Migrantes e fluidos, compostos dos resíduos que saem de uma mídia para a outra, da TV às interfaces das redes sociais, os memes são instâncias midiáticas de alta circulação que produzem o apagamento dos seus rastros nos processos de deslocamento e apropriação contínua. De baixa resolução, bastardos e sem assinatura, são imagens pobres, no sentido dado por Hito Steyerl à expressão, que podem atuar como um contraponto aos sistemas de representação dominantes. 

Contudo, na atualização das mesmas imagens que são utilizadas recorrentemente, muitas vezes por grupos antagônicos, com novas legendas, revela-se uma contração do repertório visual que é criado nas redes. Conjugada ao imediatismo, à concisão e à volatilidade dos memes, essa repetição expressa, também, a impossibilidade de discussão e reflexão que impera no modelo atual de redes sociais. Isso ganha maior relevância na medida em que os memes passam a ser um instrumento político e cada vez mais usado nas campanhas eleitorais. 

A eleição presidencial dos Estados Unidos de 2016 deu a medida desse impacto. A produção de memes esteve presente desde as primárias do Partido Democrata, em fevereiro de 2016, em apoio ao candidato de esquerda Bernie Sanders contra Hillary Clinton, e marcou a disputa entre Hillary e Trump até o final do pleito. Não por acaso, a eleição entrou para a história da internet como a Grande Guerra dos Memes de 2016. No Brasil, foi ao longo do processo que culminou no impeachment da presidente Dilma Rousseff que o uso de memes tomou o debate político nacional e vem assumindo protagonismo cada vez maior. 

Os memes dominaram a arena política de tal forma que o presidente Michel Temer chegou a proibir, em maio de 2017, o uso de sua imagem fora de contextos jornalísticos e de divulgação de ações presidenciais. Notificações foram enviadas a alguns sites e páginas humorísticas. O efeito foi bombástico e reverso. Em vez de serem controlados, imediatamente multiplicaram-se os memes com a figura do presidente. Reportagens nacionais e internacionais maximizaram os efeitos, culminando com o “troco” do Partido dos Trabalhadores (PT), que na época resolveu liberar todas as suas fotos disponíveis no Flickr para esse fim. O veto foi uma tentativa de reagir à forma como as redes se pronunciaram a respeito da delação da empresa jbs, que implicava o presidente Temer na Operação Lava Jato. O governo recuou nessa tentativa de controle, mas, para além desse fato pontual, ficava claro que estávamos diante de um novo contexto, não só da história da política, como também das imagens. 

Pesquisadores como a israelense Limor Shifman e, no Brasil, Viktor Chagas destacam que os memes da internet são um gênero midiático que assume múltiplas formas, mas que são sempre marcados pelo humor, com potencial para subverter as mídias tradicionais, e que se desenvolvem em razão de sua dimensão social nas redes. Outros teóricos, como os holandeses Geert Lovink e Marc Tuters, chamam atenção para sua capacidade de quebrar os limites do politicamente correto, indo muito além do que as mídias de massa poderiam suportar. Nesse flanco, abrem espaço para uma nova geração de imagens de ódio que têm se tornado recorrentes nas redes sociais. Nelas, conteúdos racistas, antissemitas, anti-islâmicos e homofóbicos são comuns. Da direita à esquerda, os memes ganham importância e seu formato de frase-imagem contamina o espectro estético da política e interfere no debate contemporâneo. 

Caso emblemático desse fenômeno ocorreu em janeiro de 2018, via post no Facebook feito pela deputada federal Cristiane Brasil. Indicada ao Ministério do Trabalho, Brasil decidiu gravar um vídeo no qual se defendia, a bordo de uma lancha, acompanhada de amigos marombados, em trajes de banho, visivelmente alcoolizados, da acusação de ter respondido a ações trabalhistas. O argumento, um tanto quanto nonsense para quem seria o titular da pasta do Trabalho, é que “todo mundo tem ações trabalhistas”. A explosão de memes que se seguiu à divulgação do vídeo acabou por abortar sua trajetória rumo à Esplanada dos Ministérios. 

Um dos bordões mais conhecidos da internet para abrir o compartilhamento de um meme sobre o Brasil é: “Regras: não há regras”. Se existia alguma dúvida sobre a precisão da frase, o vídeo a desfez para sempre. O affair Cristiane Brasil, no entanto, era só um prenúncio de outras séries inusitadas, como a batalha verbal entre os ministros do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, que virou até um poema, com uma versão “interpretada” por Maria Bethânia (“ Gilmar, pessoa horrível”) e um funk (“MC Gilmar e MC Barroso”). 

Internacionalmente conhecido como um centro produtor e irradiador de memes, o Brasil tornou-se, com o coronavírus, não apenas símbolo da pior política de gestão da pandemia, mas uma verdadeira Memeflix. Não seria imponderável pensar que quem contará a história da nossa “coronavida” são os memes. Difícil lembrar todas as surpresas que vivemos ao longo desse período. Da adaptação ao isolamento social às declarações do presidente Bolsonaro, os memes fizeram a crônica de todos os momentos em uma espécie de jornalismo visual em tempo real. Nele, o cotidiano, os novos costumes e a intensidade dos reveses políticos do país foram registrados, acrescentando novas camadas à pandemia das imagens vivida a reboque do confinamento pandêmico.”


Ensaio originalmente publicado no livro Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera, de Giselle Beiguelman, pela Ubu Editora.
As notas de rodapé presentes no original foram suprimidas sem prejuízo ao conteúdo da obra.