Manhãs sertanejas
Roxinha Lisboa (Maria José Lisboa da Cruz) é uma preciosidade humana, rara e singular. Encontrei-a, quase por acaso, no sertão de Alagoas, no povoado de Lagoa de Pedra, Município de Pão de Açúcar, na margem esquerda do rio São Francisco. Sua casa tem fachada inusitada, com pinturas na parede que chamam a atenção de quem passa atento ao diferente.
Nasceu e vive até hoje no mesmo povoado, cercada pela vegetação sertaneja, acostumada a um sol de permanente verão. É casada com Domingos, também sertanejo, a quem chama de Binga. O casal tem sete filhos (Edilma, Adilmo, Adeilso, Débora, Eudes e Ilma) e uma história de vida dura, voltada para o trabalho braçal nas roças de macaxeira, feijão, milho e o que mais fosse preciso para garantir a sobrevivência da família. Roxinha trabalhou em uma pedreira local por vários anos, “quebrando brita”, e foi gari por duas décadas pelas ruas ensolaradas do povoado.
Bati à sua porta em 2021, e ela me chegou com o sorriso largo de quem acolhe à primeira vista. A sintonia foi imediata e, desde então, estreitamos laços de amizade e admiração. Perguntei o porquê do apelido. Ela me disse que foi um mimo de família que pegou; todos no povoado só a conhecem por Roxinha. Até ela mesma não se reconhece mais por seu nome próprio: “Sabe, André, quando alguém me chama de Maria José, eu olho de lado achando que estão falando com outra pessoa. Eu sou é Roxinha Lisboa e pronto”.
Domingos, falante e brincalhão, está sempre ao seu lado, participando da conversa. A parceria e o estímulo mútuo entre marido e mulher foi o pontapé inicial na carreira da artista.
Sobre a ida dos filhos para o sudeste do país, em 2012, disse o marido: “A casa pareceu vazia. Faltava a algazarra, o entra e sai dos meninos, a risada de Adilmo… Baixou uma tristeza em Roxinha, que vivia chorando pelos cantos”. Domingos, sabendo o quanto ela gostava de rabiscar, até com pedaços de carvão, trouxe folhas de papel, lápis e borrachas e começou a promover uma brincadeira entre eles: desenharem todos os dias para preencher o tempo e matar a saudade.
Em 2021, quando nos conhecemos, o marido e o filho Adeilson, que ficou com eles, saiam à cata em lixões, no acaso, de pedaços de chapas de fibra de madeira, madeira de demolição, telhas, placas de alumínio e tudo mais que pudesse servir de suporte para Roxinha pintar. Fiquei encantado com a singularidade das peças.
A artista estava pronta. Talento, imaginação fértil, estilo definido, paleta de cores de gosto local, muito prazer em pintar e atenção a tudo ao seu redor.
Em maio deste ano, aos 66 anos, ela fez sua primeira exposição individual, no Museu do Pontal, no Rio de Janeiro. Sua inspiração nos dramas das novelas que assiste na TV foi o tema da mostra, mas sua temática vai bem além das tramas novelescas. Ela retrata momentos que lhe chamam a atenção e coloca frases nos quadros, dando asas à imaginação, em um exercício lúdico de sutil sagacidade.
No quadro Minha vida, que ilustra a capa desta edição, Roxinha foi a pontos demarcatórios de sua história pessoal. As lembranças correndo soltas por entre ilustrações e palavras, trazendo à tona desejos realizados e sonhos abafados que mexeram com seu emocional, a ponto de me dizer que não quer mais abrir essas “caixinhas do passado”. Prefere o viço de hoje, despreocupada nas manhãs sertanejas, flanando pelas histórias dos outros, recortando frases de pessoas que passam pela sua casa para conhecê-la no entorno familiar.
Tudo é muito puro, livre e natural na alma e na arte de Roxinha. E é esse descompromisso com regras, estética e cor que faz de sua pintura uma fonte de originalidade e delicadeza.