#42ÁguaCulturaLiteratura

Água Viva e a vida completa na linguagem

De vez em quando te darei uma leve história – ária melódica e cantabile para quebrar este meu quarteto de cordas: um trecho figurativo para abrir uma clareira na minha nutridora selva.

Escrever sobre Clarice Lispector é desafiador. Como o crítico poderá enquadrar em palavras alguém que escreve perseguindo o elemento que se esconde atrás do pensamento, um dos títulos pensados para a obra “Água Viva”? Talvez a atitude mais honesta seja se aproximar de Clarice como um leitor amador e não como o crítico profissional e contumaz: mais como aquele que ama o que lê, mostrando-se aberto a experimentar e a se conectar com o texto do que como quem que vai dissecá-lo, defini-lo, enquadrá-lo e analisá-lo. 

É, portanto, com o sentimento de um coração que ecoa e ressoa Clarice que eu me aproximo do texto de “Água Viva” (Novela? Romance? Tessitura de palavras?), sétima narrativa longa da autora, originalmente publicada em 1973, mas cuja definição mais propícia seria a de uma verdadeira aquarela da linguagem.

Porém, embora amador da literatura da autora, esta selva selvagem na qual se embrenha por conta e risco, parte de mim também deve operar como o crítico e mediador de leitura responsável, lidando com a experiência e as expectativas de seus estudantes e leitores. Em entrevista ao tradutor do alemão de “Grande Sertão: Veredas”, Guimarães Rosa disse que o dever do crítico era o de servir de ponte entre o livro e público, comunicando conceitos e chaves de leitura que não limitem a experiência dos leitores, mas que a ampliem, fornecendo a quem lê mais ferramentas de significação. Sendo assim, começarei este texto com alguns conceitos da teoria literária a partir dos quais a prosa de Clarice é capaz de adquirir tons, nuances e densidades insuspeitadas.

Há muitas formas de se ler literatura, ou de se usar o texto literariamente. De acordo com o teórico britânico Terry Eagleton, cada leitor tem dentro de si uma teoria de leitura por meio da qual decodifica o sentido das mensagens do texto. Um livro nunca é igual para seus diferentes leitores (nem para o mesmo leitor quando puder relê-lo). De certo modo, a partir da tinta negra no papel ou das diferentes linguagens que compõe a obra literária, o leitor vai projetando a si e ao seu próprio texto interior naquilo que lê. Desse modo, o texto de Clarice Lispector para Clarice Lispector talvez seja um texto impossível de apreender; no entanto, por meio do contato com as palavras escritas pela autora, cada leitor vai se apropriando e descobrindo uma Clarice diferente (intimista, psicológica, feminista revoltada com a sociedade, filosófica, poeta), assim como vai descobrindo a si mesmo como alguém que a lê e leva as palavras para o mundo, ou as usa como filtro para entender e sentir a vida. Nesse sentido, para ser frutífera, a discussão ao redor de uma obra literária envolve o cruzamento e a troca de leituras e pontos de vista, des-cobrindo (tirando o véu de Maya) a si mesmo por meio da leitura do outro, e o outro por meio da nossa leitura, nunca reduzindo, mas sempre ampliando e ressignificando o sentido do texto.

Um dos conceitos da teoria literária (de um dos tantos pontos de vista de ler literariamente um texto) é o que os formalistas russos, como Viktor Chlovsky, chamaram de estranhamento. A arte trabalha com a percepção do leitor e o artista cria uma nova língua (poética, literária, pessoal e motivada) na língua prosaica, cotidiana e comum que visa à troca de informações de modo objetivo e direto. Nessa perspectiva, o uso estético da palavra tem por objetivo a desautomatização, o estranhamento ou a desfamiliarização do leitor frente à obra. Portanto, o texto convoca quem o lê a perceber o material das palavras de maneira diferente, uma vez que elas estão ali não apenas como substitutas das coisas do mundo às quais se referem, mas como carnadura essencial, são forma e conteúdo, mais opacas do que transparentes, são descoberta e invenção, são um Outro desestruturalizante que suspende e revela, dando frescor e singularidade aos objetos e ao que estamos acostumados a chamar de vida ou realidade. Como diria Ferreira Gullar, a literatura não representa a realidade, mas a cria, fazendo com que nossa vida seja maior conforme os textos que lemos.

Nesse jogo com a linguagem, a literatura de Clarice parte do estranhamento, de um jogo de transfiguração e recomposição da realidade mediante o uso da palavra. Muitos consideram esses momentos de revelação e desfamiliarização da suposta normalidade do real como epifania, termo que remonta à aparição da estrela que guiou os reis Magos a Cristo na manjedoura e que James Joyce, católico apóstata, deslocou da religião para o campo profano da literatura. A epifania é um momento de suspensão do que se tem por conhecido, no qual o sujeito se abre a uma nova percepção de si e do mundo ao redor. É uma revelação, uma aparição que transcende o tom cinzento do cotidiano. Vinculado à popularização da psicanálise e à sondagem do interior como a descoberta do estranho dentro de si mesmo, autores como James Joyce, Katherine Mansfield, Virginia Woolf deram novos matizes e sentidos à literatura por meio da sua escrita epifânica.

No Brasil, esse tipo de prosa também ficou conhecido como intimista e, embora nem sempre seja lembrado ou considerado pelos críticos mais preocupados com as formas como a literatura denuncia as mazelas sociais, ou explora o terrível brutalismo que constitui a realidade social brasileira, a vertente psicológica e intimista é antiga e bem arraigada em nosso país, podendo ser enquadrados nela nomes como o de Álvares de Azevedo, Machado de Assis, Lúcio Cardoso, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu, entre outros.

“a vertente psicológica e intimista é antiga e bem arraigada em nosso país”


A narrativa de “Água Viva” parte da própria epifania. Em estado epifânico, a narradora escreve a um homem (que o leitor só conhece por meio do uso do pronome tu) uma carta-confissão na qual a voz que narra pretende captar e escrever o instante-já, com tudo que a passagem dos instantes contém de matéria viva, pulsante e reveladora. O jogo narrativo se inscreve a partir desse diálogo entre um eu que escreve para um tu que, quiçá, um dia poderá ler a carta. Se este tu é um ex-amante (como às vezes parece ser), se é o próprio Deus, enigma maior que, ausente ou presente na história, impregna todas as coisas, não somos capazes de saber. Quem escreve muitas vezes adota a postura de um analisando a falar das relações que constituem sua vida, a criar metáforas e imagens que deem sentido às experiências mais íntimas, a querer nomear para entender e acolher o que lhe escapa, a desejar se confessar a um Outro, que o entenda. Dessa maneira, mais do que um ex-companheiro, esse tu é um personagem necessário no texto, pois é a partir dele que a narradora poderá articular seu discurso. E sobre o que são as palavras e imagens de “Água Viva”, afinal?

Romance sem história, personagem sem identidade. Nesse livro, Clarice vai além de uma escrita que já vinha ensaiando em obras anteriores, como “A paixão segundo GH”: a autora se desvencilha dos andaimes do enredo tradicional, abandona a caracterização dos personagens e nos entrega um jogo de palavras, no qual uma palavra atrai a outra, para com ela captar e criar o instante como se este fosse uma borboleta. A própria identidade da personagem protagonista é abandonada. Sabemos que ela é uma pintora e, assim como nos comunica a epígrafe de Michel Seuphor, a ela não interessa a pintura figurativa em que brilhe o objeto; o que se deseja é a música que não ilustra coisa alguma; o que se busca é evocar, por meio da palavra, os reinos incomunicáveis, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência. Em determinado momento, a personagem-narradora diz:

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. o que salva então é escrever distraidamente.”

Essa escrita é uma tentativa de ver além da articulação semântica da realidade, da característica humana de criar o real a partir das lentes da cultura. Em “Água Viva”, a narradora propõe uma experiência abolitiva do sentido, em que não há um eu concreto e pessoal separado do mundo, mas uma experiência na qual se deseja a fusão com a natureza e o universo, um estado em que não se está separado das coisas, mas no qual tudo é sentido, em que há a soberania do agora sobre o eu e a vida segue livre e entregue ao presente, este instante-já, ao contínuo estético indiferenciado, o reino de sensações que percorrem as veias, o corpo, o reino de um corpo que cria e sente, de uma escrita que tenta capturar e criar o inefável.

Irmã de alma de escritores obscenos e malditos, embora também desejosos de crer e de captar a realidade última, como Hilda Hilst e Caio Fernando Abreu, Clarice nos escreve em “Água Viva” uma nova liturgia, transfigurando a realidade em outra realidade, sonhadora e sonâmbula. Assim como Emil Cioran testou os limites da lucidez que assombra o insone, a pintora-escritora cria e é criada pelo instante e pelo que escreve. É uma escrita que se faz jogo, improvisação, jazz, um isto, no qual é possível vislumbrar e se aproximar da forma essencial do ser, é-se, é-se em voz média, não conjugando, mas usando o verbo “ser” não como ligação, mas como intransitivo. É-se e a vida está completa. E a escrita continua para além das páginas do livro, rumo ao coração e à tua vida, leitor.