Ao longo dos séculos, a fábula da formiga e da cigarra foi revista, atualizada e traduzida ao gosto da moral vigente ou da preferência dos autores. Esopo, La Fontaine, Bocage, Monteiro Lobato. Em prosa e verso, muitos contestaram o caráter da cigarra, depois o da formiga, o valor do trabalho de uma e de outra. Mas nem nas versões mais recentes enxergou-se a perspectiva real da obsolescência do suor dessas formigas. Ou pelo menos da ampla maioria delas.
Alguém poderá dizer que na Revolução Industrial, primeira ou segunda, o tema foi debatido. Houve uma migração do campo para indústria e serviços que é relativamente recente e vem se acentuando com a explosão urbana. Só que nem ao longe o que se passou pode ser comparado com o que temos no horizonte. Além de emprego, renda, tecnologia, bem-estar social, somam-se ao debate questões de sustentabilidade, comunicações e conhecimento, democracia, natalidade e nutrição.
Porém, façamos como a formiguinha. Apesar de longo, o caminho precisa ser percorrido sem pressa.
Ainda existe o trabalho do frentista de posto de gasolina. No mundo desenvolvido, tanto o frentista quanto o espaço do posto de gasolina acabaram faz tempo. Mas, no terceiro mundo, automóveis com alta tecnologia aplicada estacionam e são atendidos por uma ou mais pessoas. Isso simultaneamente ao uso do carro elétrico. E ao avião, que pode ser abastecido por outro em pleno voo — com combustível líquido. Ou ao ônibus elétrico que recarrega a energia a cada parada para embarque e desembarque. Aliás, já existe o carro autônomo, que, quando chegar ao mercado, deve ser elétrico e prescindir da gasolina, do frentista e do motorista.
Os primeiros carros autônomos deverão ser os ônibus com suas linhas regulares e pistas exclusivas. Isto é, não haverá motoristas. E só agora as grandes cidades no Brasil começam a discutir o que fazer com os cobradores. Em São Paulo, eles atendem apenas 6% dos passageiros. Nos Estados Unidos, um caminhão autônomo entregou cerveja a quase 200 quilômetros de distância. Logo veremos uberistas e taxistas unidos contra o carro autônomo. É inexorável.
Se você está aflito com o tamanho da plateia para ver a sessão da tarde no formigueiro, acalme-se, porque a sala sequer começou encher.
Estima-se que, nos países desenvolvidos, onde não há frentistas nem cobradores de ônibus, 30% da força de trabalho empregada já está obsoleta. Gente que, na falta de carimbos e papéis para grampear e arquivar, troca alguns e-mails para combinar o horário de fazer um telefonema, ao qual chamam de call, e que, se tiver êxito, vai culminar em algumas reuniões presenciais, sobre as quais serão produzidos relatórios minuciosos que ninguém vai ler.
Essa gente, quando promovida, passa a frequentar conferências, palestras e outros eventos onde se apresentam gurus de todo tipo. Dizem que tem a ver com motivação. É compreensível. Fundamentais para a economia, eles garantem o trabalho da menina vestida de preto que fica com um rádio cuidando para que todos os convidados sentem-se nas cadeiras disponíveis. No terceiro mundo, a essa turma juntam-se os porteiros, muitos caixas de banco, seguranças e até ascensoristas de elevador. Portaria remota é cada vez mais comum, o seu destino, e só não faz isso porque não lhe custa nada apertar um botão.
Ainda no terceiro mundo, há os empregados domésticos, cozinheiras, arrumadeiras e babás. Quem os usa diz que seu tempo é valioso e, por isso, precisa da “assessoria”. Sofisma. Obviamente, o tempo do empregado é que tem pouco valor. Mas o custo é alto. Porque, se a babá está criando o filho da patroa, quem está cuidando do filho da babá?
No campo, os grandes temas tradicionais definham. Trabalho e posse da terra passaram a ser secundários. A produção depende fundamentalmente de tecnologia.
Quem acha que o trabalho intelectual se salva deveria olhar a tecnologia cognitiva. Há estudos em que pareceres jurídicos feitos por robôs superam em muito a qualidade dos advogados mais bem pagos.
Assim, não é exagero concluir que, no mundo todo, pelo menos metade das pessoas empregadas, se fossem demitidas, não fariam a menor falta ao processo produtivo. E ainda temos os aposentados, as crianças, os jovens e uma massa enorme já desempregada. Haja rede e cadeira de balanço nos formigueiros.
Os maiores formigueiros do mundo, como China e Estados Unidos, onde ainda há o chamado pleno emprego, parecem nortear a humanidade. A receita para haver emprego e renda é produzir e consumir mais. O problema é que os recursos naturais disponíveis na Terra são insuficientes para sete bilhões de pessoas viverem como o bilhão e meio de chineses e americanos.
Não bastasse a natureza das formigas, que não sabem viver sem trabalhar, há um aspecto ainda mais primitivo, que também é das cigarras: ambas não podem viver sem comer. Que fazer?
Uma ideia começa a reunir gente boa pelos quatro cantos. Não é propriamente nova, mas cresce aliada às circunstâncias e experiências contemporâneas. Melhor ainda, une gente que historicamente discorda sobre quase tudo.
Socialistas e capitalistas, conservadores e progressistas, esquerdistas, direitistas, centristas, isentões e, sobretudo, cigarras e formigas convergem sobre a saída pela renda básica universal.
No Brasil, o militante número um é o vereador paulistano Eduardo Suplicy, que passou décadas no Senado Federal repetindo a cartilha, conquistou avanços e reconhecimento internacional. Recentemente, ele esteve nos Estados Unidos para a Brazil Conference, organizada pela Harvard e pelo MIT, e topou com um aliado improvável: Olavo de Carvalho, oráculo da chamada “nova direita”.
A ideia é que as nações garantam a cada um dos seus cidadãos uma renda básica. Do Jorge Paulo Lemann ao mais pobre dos brasileiros, todos receberiam o numerário. E gastariam como bem entendessem.
Mas, quanto isso custaria? Não dá para precisar, porque depende do modelo. Porém, uma coisa é certa: nada pode custar mais caro do que a pobreza.
E de onde sai o dinheiro? Bom, primeiro o Estado economiza com os males causados pela pobreza, que começam com a saúde, nutrição (o filho da babá), passam pela educação (evasão escolar, impossibilidade de aprender com fome e outras preocupações), fiscalização dos programas seletivos de transferência de renda (ver Eu, Daniel Blake), a Previdência como um todo (algo mais atual?) e o aumento da marginalidade.
Alcança a própria democracia, com a melhora da representatividade pela diminuição do clientelismo, que arrefece a corrupção, aumenta a noção cidadã, gera coesão social com limites para a desigualdade e faz justiça valorizando financeiramente trabalhos fundamentais que não são remunerados, como o da dona de casa, do parente cuidador de idosos, do serviço voluntário.
Mais: programas parciais de transferência de renda, como o Bolsa Família, provam que, botando dinheiro em circulação, a economia cresce e, com ela, a arrecadação de impostos.
É legítimo ganhar sem trabalhar? Sim, e são muitos os casos. Aposentados ganham. Trabalhadores rurais, mesmo sem terem contribuído com a Previdência, recebem auxílio na velhice. Pescadores contam com o Seguro Defeso. Uma fazenda arrendada, um imóvel alugado, ações e outras aplicações financeiras, geram renda sem a contrapartida do trabalho. E nenhum dos casos é motivo de vergonha.
A felicidade enquanto ativo também deve ser considerada. Tristeza tem um custo social altíssimo. A renda básica permitiria às pessoas exercerem sua vocação, trabalharem e contribuírem com o que podem fazer melhor, sem se desesperarem por qualquer salário. O aumento da qualidade dos serviços está diretamente ligado ao aumento da qualidade dos produtos e, consequentemente, à diminuição da necessidade de tantos recursos naturais para alimentação, vestuário, moradia, transporte.
Isso também diminuiu o risco da inflação de preços. O consumo consciente é próprio de quem precisa de menos. Duvida? Vá ao supermercado com fome e faça o teste.
Competição sempre haverá, inclusive financeira. Só que seria mais saudável, ou minimamente mais ampla ante a possibilidade de não desperdiçar talentos. Mordomos ingleses têm paixão pelo seu ofício. Estudam, preparam-se, se dedicam à excelência. Bilionários pagam caro e com prazer pelo seu trabalho.
Quantos bons médicos a sociedade perde todos os anos para a dificuldade que cinco anos de dedicação exclusiva à universidade exige? Com a renda básica, eles se multiplicariam. Assim como os artistas e os esportistas. E — por que não dizer? — os bebês, cada vez mais raros no Ocidente.
Bom, já vou longe e creio que está explicado. A equação da formiga e da cigarra foi invertida. O esforço de grande parte das formigas só encontra razão de ser na necessidade de fazer girar a roda da economia e, mais distante, mas não menos importante, na memória afetiva de alguns serviços. Quer dizer, tem muita formiga fazendo papel de cigarra e não se dá conta. A renda básica universal pode botar as coisas em seus lugares e merece ser debatida.