#26Delírio TropicalCidades

Favelas: celeiros de empreendedorismo

por Joel Pinheiro da Fonseca

Casinhas feitas na pequena favela que se instalou no local, com madeira usada para fazer os pallets vendidos ao CEASA. Raramente se vê um carro parando para comprar uma casinha ali, mas os donos e os funcionários daquele empreendimento (moradores da favela) não se preocupam: a maior parte das vendas é feita pelo Facebook.

Esse caso, que tive a oportunidade de conhecer por conta própria, é apenas um dentre os milhões de exemplos de empreendedorismo nas favelas brasileiras, uma realidade por muito tempo escondida pelos preconceitos que a opinião letrada costuma nutrir sobre as classes sociais mais baixas.

Ou ajudamos os pobres, ou eles ficarão para sempre na miséria. As multidões que habitam as favelas são um problema social aguardando uma solução, e cabe a nós, privilegiados, oferecê-la aos coitadinhos. Essa é uma visão ainda muito comum; assim como é comum a mescla de boas intenções (querer ajudar o próximo) e condescendência (setores inteiros da população são incapazes) que expressa.

Na verdade, as favelas do Brasil (e do mundo) não são um problema social, mas, sim, uma solução, e uma solução bastante eficiente. São o resultado de um processo intenso de migração do campo para a cidade que, em uma geração, conseguiu mudar o patamar social da maioria dos que fizeram o movimento. E o empreendedorismo foi e é parte crucial desse processo.

O primeiro grande estudo realizado sobre as favelas do Brasil é o Data Favela, feito pelo Instituto Mercado Popular e publicado pela primeira vez em 2013, com uma segunda edição em 2015. Os dados da primeira edição estão sintetizados e interpretados no livro Um país chamado favela, de Celso Athayde e Renato Meirelles. Um estudo global sobre o fenômeno das favelas em diversos países pode ser encontrado no livro Cidade de chegada, de Doug Saunders.

A foto de uma favela é uma foto de pobreza; são pessoas com menos acesso a bens e serviços do que a média dos que moram fora da favela. Mas o filme, a história que se desenrola ali, é de ascensão social. Em vinte anos, a pirâmide social das favelas se inverteu: se antes eram maioria as classe D e E, hoje (dados de 2015) as favelas têm 61% de seus moradores na classe C e ainda 7% nas A e B. O observador atento já deve ter reparado como, ao longo das duas últimas décadas, a favela de barracos de madeira perdeu espaço para as casas de alvenaria, inicialmente sem reboco e, posteriormente, até com pintura exterior. A ascensão se verifica também no consumo: TVs de tela plana, motos e smartphones são itens comuns, ainda que muitas vezes emprestados para vizinhos.

Essa população tem a aspiração do empreendedorismo no sangue, com 40% dos moradores pretendendo abrir um negócio nos próximos dois anos. Cerca de 10% têm já um negócio próprio; se por vocação ou por necessidade, pouco importa. Numa economia em que nem sempre é fácil encontrar emprego, criar valor diretamente para clientes é uma solução preferencial.

Vemos nas favelas brasileiras muitas das características que marcam o Brasil: criatividade, capacidade de improviso, uso extenso de gambiarras e outras soluções informais e de baixo custo, e dedicação incansável para obter sucesso (não como fim em si mesmo). Nesse contexto, operam com uma grande diferença: o Estado não está presente de maneira eficaz, seja para prover os serviços básicos que esperaríamos dele, seja para regular, taxar e proibir o empreendedorismo com impostos e regulamentações.

Ao contrário da visão tradicional, a economia dentro das favelas brasileiras é muito rica, e os negócios são de todos os tipos: botecos e restaurantes (inclusive com festivais gastronômicos), salões de beleza, lojas de varejo, transportes (motos e vans), mercados, casas de shows, gráficas, oficinas etc. Em quase todos os casos, reina a informalidade. Laços de confiança permitem que o sistema continue a operar e a crescer.

O desejo humano de melhorar de vida jamais arrefece. Se o Estado não aparece para cuidar de algo essencial como saneamento básico em uma área urbana, a população não fica parada esperando uma solução chegar. Encanamentos informais — pelos quais se paga taxa —, venda de galões d’água e instalação de fossas sépticas — e limpeza periódica delas — são também negócios em muitas comunidades. No transporte é a mesma coisa: mototáxis e vans informais levam moradores e fazem entregas por morros íngremes. Em alguns casos, como o da Rocinha, a ausência de ruas formais fazia com que os Correios não entregassem correspondência na comunidade — a solução foi dada por empreendedores locais que, mapeando as vielas e cobrando uma taxa, passaram a fazer o serviço do qual o Estado abdicou. A garra do empreendedorismo supera a ineficiência do monopólio estatal.

O urbanismo não planejado, por fim, é outra lição que a favela tem para ensinar ao restante do Brasil. Com as edificações sempre muito próximas, cada casa ocupando novos espaços, subindo uma na outra, como numa selva baixa, valoriza-se o convívio e a troca. É muito comum morar na mesma vizinhança que a família, e a visita à casa de amigos bem como o empréstimo de bens (e até de cartão de crédito) são mais comuns lá do que no Brasil das habitações formais. Para o senso de ordem cartesiano e asséptico de alguns, o aparente caos urbanístico de uma favela pode parecer feio. Este crescimento orgânico e adaptável, contudo, é muito mais propício ao empreendedorismo do que conjuntos habitacionais frios e sem lugar para comércio e serviços.  

As favelas são máquinas bastante eficientes de ascensão social. Enfrentam, no entanto, muitos desafios para se integrar e continuar a se desenvolver. Saneamento básico, lei e ordem providas por um Estado de Direito — infelizmente, o Estado brasileiro fica muito aquém desse ideal quando se trata das favelas, ainda que seja preferível a suas alternativas: crime organizado e milícias —, simplificação regulatória e tributária para não matar a economia popular, regularização fundiária de muitas das propriedades que já existem de fato. As soluções, sejam quais forem, ainda que demandem (e certamente demandarão) investimento de fora, partirão de dentro, desde que haja a liberdade necessária para o crescimento continuar.