#21SolidãoCulturaLiteratura

Um tesouro esquecido

por Shogyo Gustavo Pinto

“Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!”

“Lisbon Revisited” (1923),
de Álvaro de Campos

As palavras quase gritadas nos versos que Álvaro de Campos, o heterônimo, “ditou”, em 1923, a seu escriba, Fernando Pessoa, soam com extrema atualidade hoje quando celulares apitam e os cães de Pavlov em que nos convertemos salivam rápido a atender seu tirânico Senhor.

Perdemos um tesouro, e nem temos consciência de quanto nossas vidas se empobreceram. Perdemos o prazer de estar a sós. A solidão, bênção que nossos antepassados souberam cultivar, tornou-se palavra de conotação quase pejorativa.

É sublime, evidente e inegável a maravilha da companhia dos seres amados, cuja presença ilumina nossas vidas, mas sua ausência é desafio maior ao humano coração. Os entes queridos têm o dom de nos alegrar só por se fazerem presentes.

Esquecemos, porém, de que há maravilhas opostas, e complementares, o que só pode acontecer entre os diferentes. Mesmidade gera redundância, reiteração, não complementariedade.

Os chineses ensinavam na doutrina do Yang e Yin que os opostos existem no interior do Tao, unidade que os transcende, engloba e fundamenta. Heráclito dizia que “os contrários convergem e dos divergentes nasce a mais bela harmonia”.

Os velhos mestres recomendavam que, ao descobrirmos uma maravilha, não esquecêssemos de buscar a maravilha oposta, senão restaríamos coxos como o saci que hoje nos tornamos, incapazes de reconhecer a solidão como tão admirável e desejável quanto o seu oposto.

Sempre prezaram a solidão aqueles em busca de Deus. Não deve ser impossível, mas talvez seja um pouco mais difícil ouvi-lo em meio ao alarido de muitas conversas, a digitar sem parar mensagens, ou com fones de ouvido a estrondar incessantemente músicas ensurdecedoras. Usar novas tecnologias é sem dúvida uma maravilha. Falta descobrirmos a maravilha complementar, que é a liberdade de sabermos quando não usá-las.

Aos que há muito vivem aprisionados no imperativo da companhia, talvez seja útil um roteiro de introito à estética da solidão.

Sugerimos quatro perambulações a sós em meio à natureza. A ordem em que são apresentadas escolheu principiar pelo declínio e terminar no apogeu do curso das estações que giram contínuas em sua invariável sequência. Começo e fim são apenas humanas interpretações da eterna mutação. No outono, ao caminhar entre árvores frondosas, ouvir atentamente o silêncio se romper ao som das folhas secas que encobrem a terra quando crepitam aos passos do visitante. Apreciar o tom rubro, ardente qual brasa, daquelas folhas que parecem incendiar-se quando partem dos galhos onde nasceram e viveram. Enrubescidas, aquecem através dos olhos os viandantes nessa estação em que Apolo prepara sua viagem anual à Terra dos Hiperbóreos.

No inverno, quando as temperaturas descem a extremos, caminhar no ermo a contemplar as breves nuvens que surgem e desaparecem ao ritmo da respiração. A quietude ama o frio e a vida se acalma enquanto a estrada aparente que o sol percorre, a eclíptica, inclina-se buscando o horizonte. As plantas dormitam, os animais recolhem-se a seus ninhos e tocas. A mudez dominante ressalta cada esporádico som. Vez ou outra um pássaro canta, e sua voz estilhaça o silêncio tal como o relâmpago rompe a escuridão. Se estiver nas latitudes mais distantes do Equador, ou nas alturas de montanhas majestosas, ouvir a neve calar os passos de tudo que se move, e ver como cintila cada sinal de cor que resiste e persiste em meio ao branco.

Na primavera, observar o irromper do verde que esteve ausente e retorna nas primeiras brotações. Ouvir o alvoroço das abelhas ante as floradas, e o estrondo dos raios anunciando chuva. A despedida do frio convida as vozes que estiveram caladas a entoar seu canto. O caminho do sol que se inclinara volta a se erguer, os dias prodigalizam luz e instigam os seres vivos ao movimento. Os animais que hibernavam recolhidos fazem-se andarilhos, animam-se em folguedos, enamoram-se, procriam. O mundo que submergira no cinza renasce pródigo em cores.

No verão, observar o vigor poderoso das plantas que seguem o exemplo do bambu em seu célere crescimento, e ver como prosperam agora os filhos da primavera. Quando sob o sol a transpiração salgar a pele, sentir o contraste ao entrar lentamente nas águas doces de um riacho, ou então no mar para que o sal quente do suor se encontre com o sal fresco das águas. Ao irromper da sede, contemplar a promessa na verde esfera entre as folhas da palmeira. Ouvir o som surdo do fruto ao cair sobre a areia macia, e depois o estalo claro da lamina a romper a rija casca. Por fim, descobrir o sabor leve da água dadivosa que se resguardou fresca sob o sol escaldante.

Muitas das descobertas narradas nos quatro parágrafos anteriores teriam inevitavelmente passado despercebidas a quem caminhasse entretido numa conversa, ou no prazer de receber e responder mensagens. A companhia, seja física ou eletrônica, exige uma redução da atenção a si e ao entorno para se dedicar também ao interlocutor.

A experiência estética da solidão é apenas a antessala do tesouro. O sacrário que guarda a joia maior está adiante, na dimensão metafísica da solidão. O êxtase da beleza precede a entrada no mistério do silêncio em que brilha o sentido de cada fugaz instante aqui em nosso “mundo flutuante”, como disse o poeta chinês Li Mi-an no século XVI. Essa descoberta cada um faz a sós consigo para então descobrir-se uno com tudo e com todos.

A companhia nos oferece a maravilha da alegria quando uma presença torna ensolarado o dia chuvoso, e nos ensina a amar o outro. A solidão nos oferece a maravilha da serenidade que vê este mundo com olhos de além, e nos ensina a amar a nós mesmos. Os dois amores nos ensinam o amor da Vida Infinita pelos seres finitos.

A companhia é um bem. A solidão é um bem. O melhor é usufruirmos às vezes de um, às vezes do outro. Só assim seremos inteiros, só inteiros seremos quem somos, e só em quem somos encontraremos a inexplicável felicidade.