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“Homem-Peixe”: Uma conversa com Allexia Galvão e Gleeson Paulino

Osklen e Amarello apresentam curta-metragem filmado na Amazônia, em um encontro entre os saberes ancestrais e as inquietações modernas.

O Pirarucu é um peixe da bacia Amazônica que chama a atenção pelo seu tamanho, podendo chegar aos 2 metros. Além da envergadura, outro aspecto marcante do peixe é sua aparência pitoresca, um “jeitão” primitivo que fica gravado na retina de quem o vê. Não à toa, é uma figura lendária — e, no caso, “lendária” de verdade, sem afetações de discurso.

Eis a famosa lenda do Pirarucu: um jovem guerreiro indígena dono de um coração perverso, além de gostar de criticar os deuses aos quatro ventos, ainda tinha o oprobrioso costume de, a bel prazer, executar outras pessoas da sua aldeia. Descontente, Deus Tupã — o deus dos deuses — afundou o guerreiro malfeitor nas profundezas do rio e o transformou em um peixe gigante. Assim, Pirarucu renasceu escamoso, em um corpo com o qual não poderia mais praticar atrocidades.

Talvez você já tenha ouvido essa história, mas ela agora ganha novos ares, como o ponto de partida de uma reflexão profunda sobre nós enquanto seres humanos e filhos da natureza, no formato de um filme que estreou no Cannes Indie Shorts Awards deste ano — “Homem-Peixe”, uma parceria Osklen & Amarello. A produção, realizada na Amazônia, insufla os pulmões com lendas originárias e contemporaneidade, bombeando um respiro que provoca um intertexto intenso entre as duas realidades.

Para falar sobre o filme e refletir sobre os seus desafios e significados, conversamos com a diretora Allexia Galvão e o diretor criativo Gleeson Paulino

Se você quer se banhar com uma história legitimamente brasileira, você está no lugar certo.

O ‘Homem-Peixe’ propõe um resgate da nossa ancestralidade, tendo como pano de fundo as lendas e tradições, tão presentes no nosso mundo imaginário.” 

O que significa fazer um filme desses, tão na contramão do ritmo proclamado pelo mundo digital, nos dias de hoje?

Gleeson Paulino: Começamos o filme com um pedido de pausa, de tempo, de respiro. No mundo digital em que vivemos, isso é pouco valorizado e muito menos notado, já que tudo é instantâneo, artificial e descartável. O “Homem-Peixe” propõe um resgate da nossa ancestralidade, tendo como pano de fundo as lendas e tradições, tão presentes no nosso mundo imaginário. 

Allexia Galvão: Antes de tudo, acredito no poder da linguagem cinematográfica, na combinação de elementos que ultrapassam as esferas físicas ​e transportam para um outro universo — um universo que se permite ser, como em um processo de meditação. Ao mesmo tempo, a experiência só se torna completa a partir do momento em que o filme é visto e, então, a montagem entra como um elemento de equilíbrio entre tempo e fluidez, ​despertando o nosso olhar, a nossa atenção.

Quais os maiores desafios de uma produção como essa?

AG: Fazer um filme​ sempre​ é um exercício de coragem. Os desafios são sempre inúmeros. Transpor o roteiro para imagem e som, conciliar vontades, reunir equipe, levantar uma produção, entre tantas ​outras ​coisas. Tudo isso só é possível porque o cinema é uma arte que nasce do coletivo.

GP: E a natureza é tão rica e vasta que um dos desafios, talvez o maior, foi conseguir condensar tantos elementos, símbolos, energia e histórias tão potentes em uma fração de tempo tão pequena.

AG: Filmar na Amazônia é inspirador. Mas, como a natureza está em constante mudança, é preciso ter desapego para lidar com as constantes adaptações necessárias de decupagem​. A natureza te dá​​ presentes maravilhosos, mas ​não podemos esquecer que ​ela é viva​ e se transforma a todo instante. Tudo muda muito rápido. O dia está ensolarado e, de repente, estamos no meio de um temporal.​ Se a cena final foi decupada em determinado lugar e horário no tech scout [visita técnica feita pela equipe], pode-se ter certeza que, em função da luz, no dia seguinte, no mesmo horário, ela estará completamente diferente. ​​Dirigir um filme todo rodado na Amazônia é lidar com os desafios impostos pela própria natureza. ​

A natureza, aliás, é uma grande personagem do filme. Em termos de ofício (fotografia, direção, roteiro…), como reproduzir isso?

AG: A natureza é a força sutil do universo, a manifestação mais profunda da vida, é onde a beleza mora. Como cineasta, considero​ ​o nosso maior desafio​ ​levar às telas a natureza de todas as coisas e,​ com isso​, emocionar. Através das emoções, podemos acessar a nossa própria natureza​ e a de quem assiste ao filme​. Os elementos cinematográficos são os nossos grandes aliados nessa missão. Tudo nasce de um roteiro, nosso ponto de partida; a produção possibilita que tudo aconteça; a fotografia apresenta o olhar atento do filme; a arte pulsa o universo dos personagens; o som vem como o recurso capaz de envolver e ultrapassar as barreiras físicas; a montagem arremata como o equilíbrio​ fundamental​. E a direção ​traz a harmonia de todos esses componentes.

Como se deu a relação das pessoas da produção com as pessoas das comunidades indígenas?

AG: O filme resgata a lenda do Pirarucu, indígena guerreiro da área dos Uaiás, aldeia que se localizava na região do Amazonas. A primeira missão foi partir até a Aldeia Cipiá​, localizada na região do Rio Negro em Manaus,​ em busca do nosso personagem. ​Fomos recebidos por Guy. 

GP: Eu já tinha uma relação muito boa com o Guy, que hoje é o novo líder da Aldeia Cipiá. Essa relação tornou o ambiente com a produção agradável e leve. 

AG: Passamos alguns dias na aldeia fotografando e observando até que nos demos conta que nosso personagem estava a todo tempo na nossa frente: era o próprio Guy! Ele tinha o dom da palavra e a lenda já habitava seu imaginário, tudo era natural para ele. ​No segundo dia de filmagem, fomos fazer uma focagem ​noturna ​e, no meio de todos os sons da Floresta, pedi ao Guy para me contar,​ em tukano — língua falada por todas as aldeias localizadas na extensão do Rio Negro —,​ a lenda do Pirarucu. ​Toda a equipe ficou emocionada escutando a história. E foi essa a gravação que usamos para guiar o filme.​

Há uma frase no “Homem-Peixe” que diz “O outro existe para você sempre se olhar no espelho”. Como ela ressoa pra vocês?

GP: Nós aprendemos muito um com o outro, certo? A outra pessoa nos inspira. É assim que adotamos novas perspectivas sobre nós mesmos e o mundo. “O outro” é nosso maior poder.

AG: A frase ressoa ​para mim ​com​o​ um valor​ primordial. Sem dúvidas, o mundo seria muito melhor se todos tivessem esse princípio. Somos seres semelhantes em vida, ainda que tenhamos a nossa singularidade, nossos desejos e vontades. 

Tupã jogou um raio no coração de Pirarucu para ele abrir os olhos e ver outro peixe. No nosso caso, qual pode ser o raio?

AG: Vivemos em um mundo com estímulos vindos de todos os lados. A era digital, ao mesmo tempo em que é fascinante por todo seu progresso tecnológico e por romper as barreiras da comunicação, nos traz muita distração. No filme, o raio aparece como uma força da natureza que desperta o personagem, ​trazendo-o para o seu cerne. De alguma forma, a natureza sempre irá se impor, seja em questões individuais ou coletivas.

GP: Acho que nós, seres humanos, precisamos sempre estar abertos a aprender, não podemos ser tão autocentrados. Quando estamos abertos, tudo flui em um ritmo diferente, nossa visão se amplia, enxergamos com mais clareza e vivemos de uma forma mais leve. O abrir pode ser o nosso raio.

Qual o maior ensinamento tirado da experiência? Vale profissional e pessoal.

GP: Pessoalmente, estar na Amazônia e ter essa vivência com os povos originários foi uma imersão e conexão com meu interior, o que acabou por ressignificar muitos dos meus valores pessoais. Profissionalmente, foi o elo do mundo digital com o mundo imaginário, dos contos, lendas e valorização da cultura. Estar nesse set foi uma grande honra, eu queria que todos pudessem ter essa experiência.

AG: Nas minhas pesquisas para o filme, li o livro “Amazônia Indígena”, de Márcio Souza. Foi com esse livro que entrei em contato com a citação da etnia Ye’kuana que fala sobre ciclos, renascimento e esperança. Passei a observar que a maior parte dos indígenas com a qual tive contato, tanto no “Homem-Peixe” quanto em “Olhos do Xingu” — meu próximo filme —, tinha a serenidade e a sabedoria de quem tem o entendimento ancestral do ciclo da vida. Talvez nesse entendimento resida toda a força e resistência necessária para se manter vivo e reluzente. A força da mudança é a mais profunda propriedade do tempo e a vida sempre será imperativa. Se colocar no fluxo é saber lidar com o imutável de maneira leve. Acredito que esse tenha sido meu maior ensinamento.