
Somos o que falamos?
Livro do pesquisador Caleb Everett explora como a multiplicidade de línguas molda o pensamento humano e influencia nossa compreensão de mundo.
No fio invisível entre as palavras e os pensamentos, costura-se uma das mais antigas questões humanas: até que ponto a linguagem molda quem somos? Se falamos o mundo para compreendê-lo, seria possível que a maneira como falamos o mundo determina a maneira como o vemos, sentimos e, até mesmo, o habitamos? Para o linguista Caleb Everett, autor do livro A Myriad of Tongues: How Languages Reveal Differences in How We Think, a resposta é bastante clara: somos, ao menos em parte, feitos das línguas que falamos.
“O que se vê, ao analisar as línguas com atenção, é que elas são profundamente diferentes entre si, não apenas na forma, mas nos conceitos que sustentam.”
Por muito tempo, acreditou-se que todas as línguas do planeta, por mais distintas, possuíam categorias universais. O pensamento parecia lógico: todos nós temos corpos semelhantes, ouvidos semelhantes e habitamos o mesmo mundo físico. Por que, então, seria diferente? No entanto, Everett e outros pesquisadores que se debruçam sobre línguas “não-ocidentais” — especialmente aquelas da Amazônia — mostram que essa homogeneidade é, na verdade, um mito. O que se vê, ao analisar as línguas com atenção, é que elas são profundamente diferentes entre si, não apenas na forma, mas nos conceitos que sustentam.
O tempo, o espaço, os números, as relações humanas, aquilo que nos parece tão natural e universal é, no final das contas, uma construção linguística e cultural. O que enxergamos e o que ignoramos, o que calculamos e o que não contamos, tudo passa pelas palavras que aprendemos e usamos. Num primeiro momento, esse pode até parecer um conceito estranho. Mas, quando se faz um esforço para que pensemos o mundo para além da nossa própria esfera, ele faz todo o sentido.

A título de exemplo, pense no tempo. Em português, assim como na língua inglesa, o futuro está à frente; o passado, atrás. É uma imagem tão arraigada em nosso imaginário que é difícil questioná-la, criando a impressão de que não há qualquer outra alternativa para ela. Nós “olhamos para o futuro”, “deixamos o passado para trás”, “seguimos em frente”… Mas, para os Aymara, povo dos Andes, o tempo é o avesso do que conhecemos. Para eles, o passado é que está à frente, visível e palpável como uma paisagem que já foi atravessada. O futuro, esse desconhecido que não se vê, está atrás, oculto. É uma lógica diferente, mas é impossível negar que ela carrega muito sentido.
Caleb Everett observa como essa inversão revela uma percepção radicalmente diferente do tempo. Enquanto nós, ocidentais, concebemos a vida como uma jornada linear em direção ao futuro — um destino que escolhemos e perseguimos — os Aymara olham o tempo com outro olhar, sendo o passado uma memória e o futuro um mistério. Com uma imagem, resume-se bem: uma pessoa idosa sentado à porta de sua casa, olhando para as montanhas distantes, não está apenas observando a paisagem. Ela está encarando o tempo: as montanhas são o passado, vasto e conhecido; atrás dele, o que ainda virá.
Na Amazônia, entre os Tupi Kawahib, a palavra “tempo” sequer existe nos moldes ocidentais. Não há a necessidade de marcar horas, minutos ou segundos. O tempo, ali, é mais um fluxo do que um conceito. Para os Karitiana, outro povo originário amazônico, o tempo é dividido de forma binária: há o futuro e o não-futuro. Passado e presente misturam-se em um mesmo bloco, enquanto o futuro carrega a única certeza — é o que ainda não veio.
Já entre os Yagua, no Peru, o tempo é fracionado em oito categorias diferentes de passado, com níveis de distância no tempo que são impensáveis para falantes de português ou inglês. Há um passado distante, um passado de meses, um passado de semanas e um passado de ontem — e cada um deles carrega uma palavra específica. Assim, falar do tempo em Yagua exige uma atenção muito mais fina às distâncias temporais. Para nós, o minuto que acabou de passar e os milhares de anos de humanidade estão na mesma categoria. Onde vemos apenas “passado”, eles veem camadas de tempo.

Esses exemplos, além de curiosidades linguísticas para lá de interessantes, revelam como cada língua faz com que seus falantes prestem atenção em aspectos diferentes da realidade. Ou seja, o idioma molda a percepção, forjando o que valorizamos e como categorizamos o mundo. No caso do tempo, ele deixa de ser apenas um conceito abstrato para se tornar um espelho da cultura que o nomeia.
Se a percepção do tempo varia com a língua, o mesmo acontece com o espaço. Usamos referências como “esquerda”, “direita”, “para frente” ou “para trás” para descrever o mundo ao nosso redor. Esse sistema é egocêntrico, centrado no corpo de quem fala. No entanto, entre os Kuuk Thaayorre, da Austrália, o espaço é organizado de forma geocêntrica, em referência aos pontos cardeais. Para eles, não há “esquerda” ou “direita”, mas “leste” e “oeste”. Se você perguntar a um falante de Kuuk Thaayorre onde está algo, ele responderá com precisão geográfica: “ao sudoeste da árvore”, “no norte do rio”. Esse sistema, claro, tem uma consequência impressionante: os Kuuk Thaayorre desenvolvem um senso de orientação extraordinário, já que, desde crianças, eles aprendem a perceber a direção em que estão virados a todo momento, como se possuíssem uma bússola interna.
Essa orientação geográfica também se reflete na forma como os Kuuk Thaayorre percebem o tempo. Em vez de imaginar o tempo como uma linha que vai da esquerda para a direita, como fazemos ao ler um calendário, eles o enxergam como o movimento do sol. O passado está no leste, onde o sol nasce, e o futuro no oeste, onde ele se põe. Ao ordenar eventos temporais, um falante de Kuuk Thaayorre colocará o passado sempre em direção ao leste, independentemente de onde estiver virado. O tempo, para eles, é uma paisagem em movimento, guiada pelo horizonte.
“Mais de 7 mil línguas são faladas no mundo hoje, mas, segundo estimativas, metade delas desaparecerá até o fim deste século.”
Entre os Pirahã, uma cultura amazônica estudada pelo pai de Caleb Everett, Daniel Everett, a ausência de números precisos é um dos aspectos mais intrigantes de sua língua. Eles não possuem palavras para “um”, “dois” ou “três”. O que existe são expressões vagas como “poucos” e “muitos”. Para os Pirahã, contar não é uma necessidade, e o conceito de quantidades exatas é, de certa forma, irrelevante.
Isso significa que os Pirahã são menos inteligentes ou desenvolvidos? Longe disso. O que a ausência de números revela é apenas que nem todas as culturas valorizam a precisão matemática. Enquanto nós vivemos em um mundo governado por relógios, calendários e sistemas de medição, os Pirahã habitam um mundo em que o “quanto” importa menos do que o “como” ou o “quem”. A linguagem, nesse caso, reflete uma maneira distinta de navegar pela vida.
Mais de 7 mil línguas são faladas no mundo hoje, mas, segundo estimativas, metade delas desaparecerá até o fim deste século. Línguas morrem quando seus últimos falantes desaparecem ou quando as novas gerações abandonam seu uso. Com cada língua que desaparece, perde-se não apenas um conjunto de palavras, mas uma maneira única de ver o mundo. Caleb Everett nos lembra que cada língua carrega em si um universo de significados, uma forma de experimentar o tempo, o espaço, os números e as relações humanas. Quando uma língua morre, o mundo perde uma janela de possibilidades, uma perspectiva que nunca mais poderá ser recuperada.
No fim das contas, talvez sejamos, sim, moldados pelas palavras que usamos. A língua não é apenas um reflexo do mundo, mas um filtro através do qual o mundo nos aparece. As categorias que usamos para falar do tempo, do espaço e das quantidades moldam, de forma sutil mas profunda, a maneira como pensamos e sentimos. Somos feitos das palavras que aprendemos, das frases que dizemos e das histórias que contamos.
Se a linguagem é o que nos torna humanos, então a diversidade linguística é o que nos torna infinitamente variados. Cada língua é um universo, e perder uma língua é perder um mundo.