Há tempos eu não acordava com a sensação que tive hoje pela manhã ao abrir os olhos. Adormeci na casa de meus pais, onde já não moro há mais de 15 anos, e ali, entre palpitações e calafrios, passei a infindável madrugada. Ao despertar de uma noite mal dormida e angustiada, em virtude da quebra da bolsa de Nova York, fui tomada por um sentimento estranho e de total alienação. De olhos bem abertos (junto ao nascer do sol nas montanhas do sul), porém como se ainda estivesse vagando pelo universo onírico – era como se não pertencesse, ali, àquele momento.
Gradualmente, com a retomada da consciência, fui me dando conta de que todo aquele estranhamento nada tinha a ver com a casa da fazenda colonial dos meus pais – aquele lustre de bronze velho, a sanca do quarto que um dia foi representativo de status ou as paredes de taipa cobertas por papel de parede francês amarelado e esgotado pelo tempo, e, ao olhar pela janela, o mato que crescia e devorava terras outrora férteis e produtivas. Ainda assim, minha alienação era de outra ordem, muito mais profunda do que a estrutura material que me acolhia. A minha sensação de deslocamento era consequência concreta do fim de uma relação que até então vinha nutrindo com o meu país. Veio então a realização de que eu e o Brasil enfrentávamos uma crise de relacionamento. Eu já não mais me sentia representada por ele, e ele, muito provavelmente não identificado em mim. O romance havia chegado ao fim…
Não tinha sido o melhor dos romances. Nasci, cresci e fui educada com uma noção clara de estar na periferia do mundo, longe do progresso, da sofisticação, do pensamento real. Era preciso atravessar o oceano, voltar à Europa para buscar lá umas raízes que aqui não vingariam, por mais fértil que seja esse solo. Paris era uma festa. Mas foi lá, enquanto eu e o Oswald mostrávamos como fazer caipirinha e tentávamos adaptar a receita da feijoada aos ingredientes franceses, que me dei conta de estar perdendo algo que só poderia mesmo existir aqui. Tinha vontade de algo além dos volumes coloridos que aprendi a pintar com o Léger. Era preciso mais cor, mais volume e um certo calor que a Europa nunca teve.
Quando voltei para o Brasil, comecei a me lembrar da infância, dos negros na fazenda, das criancinhas mulatas. Tudo tinha outro gosto. Estava seduzida, intoxicada, talvez até mesmo apaixonada. Fui para o Rio no carnaval, levei o Blaise Cendrars para conhecer as cidades históricas de Minas Gerais. Descobri que as cores de Paris, por mais inebriante que lá pudesse ser a vida, eram um tanto esmaecidas. Pau Brasil. Foi aí que eu entendi o que tanto faltava nos meus quadros, uma herança tropical que não pode ser negada. Mas também tenho minhas dúvidas se não forcei a mão, se isso tudo não era um exotismo fingido, se eu não era a caipira que negou a raça por um prisma parisiense quando tudo ainda era rude e tosco, irremediável. Estava instaurada uma crise tão aguda quanto o desbunde das cores da minha paleta.
Assim passa o meu tempo, entre dias adormecidos e noites em claro – na eterna e inebriante dúvida entre lá e cá. Meus sonhos e fantasias antropofágicas desejam o estrangeiro, para que dele eu absorva novas influências e cresça mais forte. Mas, em seguida, meus ideais tão completamente enraizados em terras do Brasil profundo me jogam de volta para cá, para além dos mares e oceanos gélidos da Europa, novamente retorno em busca da minha identidade tropical.
Nem aqui nem ali – pois não mais me encontro entre o novo e o velho. O que me chama é a possibilidade de um novo romance. União Soviética, é pra lá que eu vou.