#14BelezaArteCinema

Domingos

por Carlos Andreazza

O ofício de editor, muito menos glamoroso do que supõe o senso comum, às vezes presenteia. Para além do trabalho solitário que, imponderável, não raro se multiplica em leitores, isso que é sempre uma surpresa, sempre um golpe de esperança; para além da satisfação em ver um livro brilhar, o prazer egoístico em observar um desconhecido retirar da prateleira e folhear um objeto que, bem antes da materialidade, terá sido, então apenas texto, só seu, ainda que de passagem, ainda que em trânsito; para além do deleite em de repente sentir que aquela sua aposta vingou, venceu; para além do livro, para além do próprio livro!, existe, suprema, a relação com o autor. Nunca igual. Nem sempre boa. Incondicionalmente sagrada.

Escrevo isso enquanto penso no escritor, dramaturgo e cineasta Domingos Oliveira, artista completo, visceral, romântico na acepção clássica do conceito, homem que viveu e vive no estado da arte, na arte, para a arte, com a arte, de arte – artista, criador orgânico, de quem o ofício de editor me aproximou pouco antes de um outro editor, o monumental Tomás desta Amarello (este sim, de vida glamorosa), sugerir-me que cá escrevesse (prato cheio a um conservador como eu) sobre a beleza de um tempo que passou, tempo pré-utilitarismo, anterior ao advento da urgência (e da depressão e de toda sorte de fobias vanguardistas), quando a fruição, o prazer, o gosto, o simples gosto, decorria de um contato que, se não diria puro, era ao menos livre das cartas marcadas de hoje, das marras-amarras de estilo, das expressões indicativas da norma achatada, da impessoalidade, da obrigatoriedade, da uniformidade, dos minutos contados, dos minutos corridos, dos instantes impostos, dos gozos filtrados, compartilhados, cutucados, da ejaculação de estima que depende da aprovação alheia, da curtição alheia, do que se espera de nós, a publicidade, a felicidade!, do que afinal nos anula: tenho que, preciso de.

E, então: Domingos Oliveira.

Conheça-o, ainda que há uma hora, e saiba – eis a transparência: sua obra é sua vida. Tão simples e tão complexo assim. Aquele ritmo que imprime, que sempre imprimiu, a seus trabalhos, aquele é o ritmo de sua existência, de seus sucessos e de seus fracassos. Aquele é o compasso de seu pensamento, de seu humor, de sua originalidade, de seu fraseado, de sua capacidade de se sacanear, de sua franqueza poética, algo muito próprio a quem se sabe artista – para quem, suponho, tudo seja tão mais fácil e tão mais difícil. Ou não?

Reflita, leitor. Como não? Como negar as dores e os amores de alguém cujos filmes e peças são a própria vida? Como, para alguém cujas fronteiras entre real e ficcional, entre amante e personagem, só servem à linha do horizonte projetado, à dimensão da tela, à profundidade da cena?

E é então o caso de considerar se poderia ser diferente. Haveria – haverá – alternativa para Domingos Oliveira? Conhecerá ele outro caminho?

Não é método. Não é fórmula. Não é gesso. Não é preguiça. Nunca! Muito menos vaidade. Jamais escolha. Antes, bem antes, um destino; sim, um destino artístico, uma condenação artística, dionisíaca, um muro radicalmente independente contra o qual só se pode chocar, contra o qual só se pode deslumbrar.

E não é à toa que, ao pensar em Domingos, agora que o frequento, venha-me à mente a mesma imagem que sempre fiz representar sua obra: uma sala e muitos amigos reunidos, informalmente, banalmente, esta matéria de que é feita a verdade, bebendo, fumando, beijando, rindo, brigando, talvez fodendo, talvez dormindo, talvez até de saco cheio – mas sem qualquer marca de tempo, de compromisso, de dissolução, de atraso, de imposição. De saco cheio porque de saco cheio, valor absoluto, e não porque – angústia! – talvez esteja melhor, mais animado, em outro lugar.

Seria fácil rotulá-lo, graciosamente, como um tipo exótico, alguém do século XIX, quiçá da primeira metade do XX; mas seria covarde. Seria uma leitura urgente, apressada, plenamente medrosa, para algo que, a rigor, envergonha-me tratar como exceção atemporal: Domingos, o artista, vive apenas como quer.